O ponto de partida não é o momento perfeito que se apresenta, mas a vontade suficiente em começar.
Dando continuidade ao processo criativo compartilhado por aqui, finalmente chegamos ao primeiro Arcano Maior do Tarot que ilustro: O Mago.
Durante os primeiros anos de estudo do Tarot, confesso que tinha alguma implicância com o Arcano nº 1. Preguiça com principiantes, justou eu, que era A PRÓPRIA RECÉM-CHEGADA no estudo das cartas. O que nos incomoda, por vezes, é o espelho daquilo que não queremos enxergar em nós.
Além de sua condição de jovem aprendiz, o Arcano do Mago também é amplamente percebido pela sua habilidade em navegar pelas situações sociais, podendo ser traduzido como carisma ou, pelo espectro negativo, malandragem.
É um erro comum reduzir o Mago à condição de malandro do Tarot. Veja bem, isso não é totalmente uma inverdade. Mas também não é a verdade completa. O Mago é quem tem a cara de pau, a curiosidade e o ânimo necessários para começar QUALQUER EMPREENDIMENTO. Ora, quando se começa algo inteiramente novo, significa que o sujeito ainda não domina aquilo que executa. É preciso experimentar, por vezes errar, e tentar de novo.
O mago aprende fazendo. E, sobretudo, se diverte no processo.
O Mago
De que forma começamos a fazer o que é preciso ser feito? Comece com o que tem, mesmo que à primeira vista lhe pareça pouco. Ainda não há conhecimento formal ou experiência; apenas uma grande VONTADE.
O mago não espera melhores condições: ele as inventa. Curioso, descobre recursos onde nem se imagina. Basta um pau, uma taça, uma lâmina afiada e algumas moedas no bolso. Eis o suficiente, ou quase — pois o mago também precisa de PLATEIA.
Respeitável público: eis o arcano número 1 no palco fazendo graça, truques e mágica; porém, cuidado com os seus encantos. Afinal, o mago é o mestre das ilusões.
Na malemolência e no rebolado, o mago passeia pelo mundo atrás de experiências. Manuseia ferramentas, brinca e descobre coisas novas. Em meio a tantas possibilidades, o mago corre o risco de se perder em distrações. O mundo lhe é diverso e interessante, mas é preciso desenvolver FOCO. Sustentar tal postura é uma de suas grandes dificuldades.
A alta capacidade de adaptação facilita a travessia do mago por momentos difíceis. Tudo tem um jeito, uma saída, uma possibilidade. Se ainda não tiver, ele improvisa no estilo MacGyver: uma tampa de caneta, um clipe de papel e um pedaço de fita adesiva são a gambiarra perfeita para resolver um problema aparentemente insolúvel.
O eloquente vendedor, o carismático artista ou inventor de artefatos inusitados tem muita vontade de viver e de testar possibilidades. Ele se estica, parece ter muitas mãos e infinitos talentos, só que precisa, em algum momento, aprofundá-los. Por se entediar facilmente com rotinas e regras, o mago não se interessa por um trabalho burocrático, com hora, local e funções pré-estabelecidas, muito menos em ter que se submeter a um chefe lhe dando ordens. O arcano se sente atraído por trabalhos criativos, menos formais, ou ao menos que lhe deem alguma liberdade para realizar as experimentações que tanto gosta.
Como lhe é natural buscar recursos e soluções por si próprio, o mago é um excelente empreendedor e trabalha muito bem sozinho, arriscando e colocando seu corpo no mundo.
Não seria justo reduzi-lo ao posto de fanfarrão. O mago é a própria iniciativa encarnada. Sem ele, não começamos nada.
A lemniscata: o infinito poder criador
Tradicionalmente, a carta do Mago vem acompanhada de uma lemniscata (o símbolo do infinito), seja no desenho de seu símbolo ( ∞ ) posicionada acima da cabeça ou, ainda, representado por um chapéu de grandes abas que o Arcano usa, formando um desenho similar ao 8 deitado.
Pretender definir o infinito é, invariavelmente, uma cilada: como pôr em termos, entender ou explicar algo que é inenarrável, inconcebível, incomensurável? Tal conceito é tão colossal que sua compreensão está além da capacidade humana; podemos, no máximo, fazer algumas conjecturas. Para isso, peço humildemente ajuda a algumas pessoas infinitamente mais gabaritadas do que eu:
Giordano Bruno, no século XVI, antes de ser queimado vivo no Campo dei Fiori em Roma se dedicava, entre outras coisas, a entender como conciliar a multiplicidade dos infinitos mundos que constituía uma das bases de sua cosmogonia e a unidade de Deus. Em seu texto O infinito, o universo e os mundos encontramos um longo discurso envolvendo duas afirmativas: o homem é finito. Deus é infinito.
Da aceitação da infinitude espacial conclui que o universo é eterno e, a partir daí, baseando-se nessas certezas, encontra o estofo com que constrói sua religiosidade.
Esta citação é de um texto intitulado O Infinito e as Formas Físicas, de Mario Novello. Este texto é absurdo de grande, de conteúdo e de maravilhosidade. Aqui, vou focar apenas na análise de Novello sobre a profundidade da revolução proposta por Giordano Bruno. Segue o raciocínio:
Giordano Bruno (…) propõe, ao reformar o céu, gerar uma nova visão do mundo e consequentemente adaptar o destino humano à sua cosmologia. E somente então, a partir dessa grandiosa reforma, tomando como ponto de partida uma visão da multiplicidade do que existe, apoiando-se na certeza apriorística e para ele evidente de uma profunda conexão entre a finitude do mundo terrestre e o Cosmos infinito, só então seguiria daí uma natural, consequente e profunda reforma da sociedade. São a abertura e o conhecimento dos mundos infinitos que permitirão que compreendamos a nós mesmos.
Mario Novello, responsável pelo texto citado acima, é um cosmólogo brasileiro, autor da Teoria do Universo Eterno, que contraria a tese popularmente aceita da grande explosão do Big Bang como o “marco zero” da criação do Universo. Novello identifica a ampla aceitação do Big Bang pela sua conformidade, em linhas gerais, com a narrativa das cosmogonias religiosas que dependem de um ponto de partida divino — no Princípio era o Verbo, para dar um exemplo.
Além disso,
A ideia de um começo explosivo é muito simples e, de uma certa maneira, ela agradou a comunidade não-científica e tomou conta do cenário. (…) Os cientistas deixaram, por simplificação, que se usasse essa imagem de uma explosão inicial, da qual você não pode ter acesso [para comprovar]”.
— Citação retirada deste vídeo do autor.
Como consequência de nossa limitada condição humana, temos imensa dificuldade em compreender uma existência sem começo nem fim. Por isso, narrativas simplificadas nos confortam, mesmo que não sejam exatamente a verdade.
Segundo Giordano Bruno, Deus, ou O Universo, é o infinito poder criador. O Mago, com sua incrível capacidade criativa, canaliza apenas uma pequeníssima porção disso. Nós, pessoas comuns, teremos sorte se soubermos usar, dentro de nossa limitada vida, alguma parte ainda menor, minúscula que seja, de tão grande poder inventivo.
Improvisar: criar o percurso enquanto se anda
A capacidade do Mago em fazer muito com pouco vem de sua criatividade e paixão pela experiência. As possibilidades da matéria o fascinam, tanto é que ele manipula os quatro elementos. Fogo, água, terra e ar — representados na ilustração da carta pelos naipes Paus, Copas, Ouros e Espadas — são suas ferramentas de exploração no mundo sensível, encarnado. Não interessa muito o refinamento, o rigor, a precisão estética-conceitual-material. Manuais, dogmas, prescrições? Ele pode até dar uma rápida olhada a título de curiosidade, para logo depois deixá-los de lado e tentar por conta própria. Ao mago, interessa o jogo. O fazer é brincar.
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Antonio Machado
Para entender o Arcano, um bom exercício é pensar na habilidade do improviso e como isso pode se manifestar em diferentes formas. Artisticamente, um excelente exemplo de Mago é o Hermeto Pascoal, cujo apelido no meio musical é, ora ora… o Bruxo. Bruxo e Mago, né? Nomes diferentes com o mesmo significado.
No vídeo acima temos um Arcano vivo: de boas na lagoa, curtindo um som diferenciado. Aqui vemos um Mago explorando literalmente um dos elementos da natureza: a água da lagoa, ou, se você preferir, o naipe de Copas.
A forma como Hermeto investiga objetos inusitados para criar música, explorando aquilo que não é convencional, se permitindo ser esquisito e até engraçado — pois é preciso se permitir ir além da regra para desvendar algo novo — é uma característica marcante do Mago. O Arcano extrai o máximo do processo e sente gozo com isso; nessa forma de agir, o resultado final não se planeja com antecipação; ele se desvela ao longo do fazer, como desdobramento natural daquele processo. Tamanha habilidade nos fascina pelo seu aspecto divino: improvisar com destreza parece mesmo um ato mágico. Não à toa, o Mago é o Arcano que faz a ponte entre os deuses e os homens. E isso é o que veremos no próximo tópico.
O Mago, Hermes e Exu: abertura de caminhos
Tradições místicas muitas vezes descrevem um guardião que fica entre o domínio mundano e a outra realidade, da magia e da feitiçaria. Antes de embarcar numa jornada para o outro mundo, é costume pedir a permissão e a benção do guardião. No tarô, essa figura pode ser representada pelo Mago, que abre a sequência dos Arcanos Maiores.
Yoav Ben-Dov, O Tarô de Marselha revelado, pág. 135.
O Mago pode ser interpretado tanto como o próprio caminhante no início da jornada dos 22 Arcanos Maiores, quanto como a entidade facilitadora do processo. É ela a quem pedimos licença, força e inspiração para desvendar, nem que seja apenas uma pontinha, os poderes criativos do universo — sejam deste mundo ou do além.
O Mago canaliza poderes divinos e é capaz de materializá-los na realidade mundana. Por isso aponta para cima com seu bastão mágico, enquanto a outra mão aponta para baixo, representando a correspondência intrínseca dos fenômenos: “O que está embaixo é como o que está em cima e o que está em cima é como o que está embaixo”. Assim descreve a Tábua de Esmeralda, cuja autoria é atribuída a Hermes Trismegisto.
Para quem não está habituado a ler sobre Alquimia, isso tudo parece papo de maluco, eu sei. Pra facilitar, vou puxar uma referência mais popular no contexto ocidental-cristão: Assim na terra como no céu, lhe parece familiar? É significativo que esta alusão à correspondência entre o divino e a matéria surja no meio do Pai Nosso, provavelmente a oração mais famosa do cristianismo.
Toda oração é um canal de comunicação entre o divino e o mundano; isto posto, o Mago, Hermes e Exu são as entidades responsáveis por transmitir as mensagens de nós, meros mortais, aos Deuses — e vice-versa.
Semelhanças simbólicas e a não-aceitação da ambivalência
Na mitologia grega, Hermes era o Deus protetor dos comerciantes, dos viajantes, dos articuladores, dos ginastas e dos ladrões. Qualquer pessoa que precisasse de alguma destreza, agilidade ou eloquência deveria cultuar esta divindade para obter seus favores.
Hermes foi sincretizado com Mercúrio pela cultura Romana, Deus este que já simbolizava as atividades relacionadas ao comércio. Neste ponto, é interessante analisar as características astronômicas de Mercúrio: este é o planeta mais rápido do Sistema Solar. Velocidade tem tudo a ver com a agilidade de Hermes, de Exu, do Mago. É Mercúrio o planeta que se encontra mais próximo do Sol. Se tomarmos o Sol como o representante da grande consciência ao redor da qual todos os planetas de nosso Sistema giram em torno, Mercúrio poderia simbolizar o intermediador imediato desta consciência superior. Viajei muito? Calma que ainda não terminei… Por estar tão perto do Sol e ser tão veloz, o planeta Mercúrio leva apenas 88 dias terrestres para dar uma volta inteira no Sol. 88 dias, veja bem este número. O 8, a leminiscata, o mesmo símbolo do infinito que acompanha o Mago. Sei lá, sabe.
Cortando a pira e voltando às deidades: além de prestar auxílio às negociações, Hermes também é quem conduz os mortos a caminho de Hades, servindo de conexão entre os vivos e os mortos, a matéria e o espírito. Na mitologia iorubá, a deidade equivalente a Hermes é Exu, o orixá mensageiro, que abre caminhos e rege encruzilhadas. É Exu quem faz o intermédio entre os humanos e os deuses, sendo o primeiro orixá do panteão a quem devemos nos dirigir, antes de consultar qualquer outra deidade. Assim como Hermes, Exu é o mais humano das divindades de sua cultura, gostando de se misturar aos homens e mulheres e exibindo características ambivalentes, bem parecidas com as nossas: nem inteiramente bom, nem inteiramente mau. Apenas quase-humano.
No início da consolidação da doutrina cristã, os deuses das culturas politeístas foram desqualificados e seus cultos, banidos. Afinal, o projeto era edificar uma nova religião, unificando o culto a um Deus UNO. Hermes, o condutor de almas e iniciado em ritos de magia foi associado às práticas de ocultismo e, portanto, coisa do diabo. Em diversos trechos da Bíblia são feitas condenações às práticas divinatórias (Miquéias 5:12-14, para dar um exemplo), eliminando também a importância dos antigos intermediadores divinos.
Em tempos contemporâneos, Exu também sofreu um processo de demonização pela cultura cristã, e suas características foram amplamente associadas à figura do Diabo, num processo repleto de intolerância e racismo religioso. Neste ponto, é interessante observar que as mesmas igrejas fundamentalistas que atacam Exu (ou qualquer outra entidade não-cristã) possuem um discurso profundamente maniqueísta. Nesta narrativa, o bem e o mal são irreconciliáveis; se a congregação se identifica com o bem, é preciso projetar todo o mal no outro — seja ele um outro indivíduo, uma outra cultura, uma outra raça ou religião.
A carta do Mago é ambivalente em sua própria natureza; aliás, todos os Arcanos do Tarot o são. Nenhuma carta será ausente de sombras; e todas as cartas, até as mais desafiadoras, terão alguma luz a oferecer.
No meu processo criativo, decidi representar o Mago meio Hermes, meio Exu: a figura da carta veste roupa com predominância do vermelho (uma das cores de Exu) e cartola com asas (um chapéu alado como o capacete de Hermes). Sua varinha mágica é Paus, que funciona como o caduceu de Hermes ou o tridente de Exu. E, perceba: ele flutua no ar sobre o ourobouros, a cobra que engole a própria cauda, num movimento infinito, formando o desenho da lemniscata. O Mago que voa como Hermes e brinca como Exu é o nosso ágil condutor pelas vias sobre-humanas. É ele o responsável por canalizar tanta potência criadora e manifestá-la no mundo concreto.
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Até a próxima news,
lari.
Oi Nanda! Muito obrigada por esse retorno. Deixou meu final de domingo mais quentinho ❤️ espero que goste do curso! Um abraço!
Simplesmente fantástico todo o processo criativo e a riqueza infinita capturada na ilustração. Incrível esse projeto!! Gratidão pela arte e por se deixar levar pela imensidão que ela transmite