Da impossibilidade de assar um mesmo bolo pela metade do tempo
Uma carta sobre o tempo das coisas e outras miudezas da vida cotidiana
Oi, pessoal!
Nesta newsletter eu vou falar sobre os seguintes assuntos:
Da impossibilidade de assar um mesmo bolo pela metade do tempo
Samico, um livro e uma exposição
Panões novos na loja virtual
Perdendo o foco com Pieter Bruegel (o velho)
Newsletter de casa nova
(uma música que cai bem agora)
Da impossibilidade de assar um mesmo bolo pela metade do tempo
Helena criou uma receita de bolo que ficava uma delícia. A receita tinha um passo a passo complexo, demorado, cuidadoso e precisava de ingredientes caros. Mas o resultado compensava: o bolo era realmente muito gostoso.
O bolo ganhou alguma fama. Quem provou o doce gostava tanto do sabor que fazia divulgação espontânea. Formou-se uma clientela do bolo de Helena.
A confeiteira estava habituada a vender a fatia do bolo para clientes pequenos. O prazer do trabalho era grande, mas a renda não era tanta. Eis que surge uma grande chance de Helena fazer uma renda maior e se sentir mais confortável financeiramente: surge O Grande Cliente.
O Grande Cliente soube do bolo, do sabor, da textura e da felicidade de quem comia uma fatia daquela delícia. O Grande Cliente abordou Helena e disse que queria comprar não uma fatia, mas um bolo inteiro. O Grande Cliente era muito mais conhecido do que Helena e seu bolo maravilhoso, e pagava bem.
Contudo, O Grande Cliente não tinha tempo.
Ele queria um bolo maravilhoso, gostoso da mesma forma que Helena já fazia, feito em menos da metade do tempo que a confeiteira usava para produzir seu bolo original.
Helena ficou confusa. Argumentou que o bolo leva um tempo específico para assar no forno. Sem isso, a receita não funciona, fica crua. O Grande Cliente repetiu que não havia tempo, mas que pagava bem pelo serviço. E queria pagar pelo bolo maravilhoso dela, só que feito em menos da metade do tempo.
Helena pensou em algumas alternativas: fez adaptações na receita, simplificou processos, utilizaria ingredientes menos nobres que seriam mais rápidos de achar. O bolo, obviamente, já não seria a mesma delícia da receita original, mas daria para o gasto. Mesmo assim, a redução do prazo que Helena conseguiu para a entrega da encomenda não era suficiente para atender à urgência d'O Grande Cliente. Ele tinha fome e precisava do bolo para ontem.
Helena ficou triste e, educadamente, respondeu:
É realmente impossível. Mesmo que eu vire a noite trabalhando na cozinha, eu não consigo assar um mesmo bolo pela metade do tempo.
…
Deixo aqui essa receita de um bolo muito delícia que já fiz várias vezes, sempre respeitando o tempo necessário do forno, pra dar uma amenizada nessa história nem tão fictícia assim.
Samico, um livro e uma exposição
Recentemente conheci o trabalho do artista Samico e adorei. As molduras, os seres meio inventados, o espelhamento dos desenhos, tudo na linguagem dele é fantástico e me pareceu, de imediato, estranhamente familiar.
Conheci Samico por conta da exposição do Movimento Armorial que está em cartaz no CCBB aqui no Rio de Janeiro, antes mesmo de ir presencialmente no museu. Meu namorado me mostrou a programação do evento e comentou que tinha umas xilogravuras que achava que eu ia gostar.
Se gostei? Procurei saber se havia um livro publicado com a obra do artista: encontrei, comprei e devorei. Nele, Samico, muito mysterioso a respeito dos motivos e inspirações por trás de algumas das gravuras (chuto pesado que por baixo desse silêncio existe um místico bem discreto), conta um pouco sobre sua rotina de trabalho.
Samico diz, à época em que foi entrevistado para o livro, que produz apenas duas xilogravuras POR ANO. Repito: apenas duas xilogravuras são criadas num ano inteiro. Cada desenho é estudado e repensado obsessivamente pelo artista até ele chegar na composição final. O livro que comprei mostra uma sequência de esboços feitos a lápis para a confecção de uma única xilogravura. Foram 35 estudos, no total. Eu contei.
Samico parece respeitar o tempo do seu bolo assando no forno.
Panões novos na loja virtual
Produzi 3 estampas novas no formato Panão Exxxtralarge - que é uma canga, mas também pode ser pendurado na parede. Eu amo esse produto, acho que é meu favorito de todos que eu já fiz (depois do baralho, claro)!
A impressão das ilustras enormes fica linda e o tecido é bem macio.
Cada produção é feita em poucas unidades - nesta leva, fiz 3 cangas de cada estampa.
Perdendo o foco com Pieter Bruegel (o velho)
Pesquisar informação pode ser uma delícia e um buraco sem fundo. Cavuca mais um pouquinho, descobre mais uma coisinha, se perde em mil ramificações, perde o foco, perde a hora - mas, ainda assim, é uma delícia. Rs.
Comecei a diagramação do Livro ORÁCULO (postei até um spoilerzinho aqui) e várias das cartas ainda não têm um texto simbólico-explicativo para acompanhar. Estava escrevendo sobre a carta nº XII, e precisava reler o mito de Ícaro e Dédalo pra refrescar a memória sobre as nuances da história (que tem tudo a ver com o significado desta carta).
O mito trata da megalomania que surge com as asas recém-fabricadas, coladas com cera de abelha em braços humanos, e que faz o serumaninho crer que, voando, pode alcançar o Sol. Só isso mesmo, baixíssimas expectativas sobre sua própria capacidade, kkkk. No mito, conforme Ícaro voa mais alto na tentativa de se aproximar do Sol, a cera derrete em seus braços, desfazendo suas asas. Ícaro cai, e cai feio.
Nesta pesquisa, cheguei até uma pintura de Pieter Bruegel (o Velho). É uma pintura que eu já conhecia e que adoro:
Sim, Ícaro, esse rapazote que se deixou levar por uma egotrip bem loka, é apenas um pequeno componente de uma paisagem muito maior. Aí você me pergunta: onde caceta tá o Ícaro nesse quadro? Eu só vejo uma cena rural bucólica, um camponês e um pastor de ovelhas cuidando da própria vida, uns barcos grandes, uma cidadezinha ao fundo e pá.
Tá bem. Olha de novo:
Ícaro é apenas um pedacinho de uma cena complexa, com outros personagens, animais e acontecimentos com vida própria, completamente alheios à sua queda. Ícaro, bora baixar essa bolinha, você é humano. Pior, Bruegel foi mais sarcástico ainda ao retratar o rapaz após a queda, num momento mais… constrangedor. Tudo o que conseguimos ver são apenas as perninhas balançando pra fora da água. Nem o rosto de Ícaro ganha visibilidade nesse quadro. Eu acho genial.
Você acha que eu encerrei a pesquisa na Paisagem com a Queda de Ícaro e voltei a escrever o Livro Oráculo?
Parei não.
O texto que eu precisava terminar ficou ali paradinho esperando eu ver outra coisa que brotou na minha tela:
Bruegel complica o meu foco num grau! Me aparece essa pintura que é uma delicinha pra se perder, cheia de detalhezinhos y acontecimentos y personagens y coisas non-sense, mas péra: a cena toda reúne provérbios antigos em língua holandesa, traduzidos de forma literal em imagens. Uma pintura que funciona como um armazenamento pictórico de ditos e dizeres de toda uma cultura. Doideira.
Muitos dos provérbios retratados estão fora de uso há tempos; ainda assim, conseguimos encontrar alguns similares em língua portuguesa:
E pra provar que a internet é maravilhosa, existe uma lista de cada provérbio retratado na pintura AND seus respectivos significados, timtim por timtim, em português, aqui.
As pinturas de Bruegel foram profundamente influenciadas por um outro pintor, um dos meus favoritos da vida (mais afeito a representações do absurdo), Bosch: um quadro, mil coisas acontecendo ao mesmo tempo. Adoro. Essas pinturas são uma espécie de proto-versão-medieval de livros do estilo "Onde está Wally?".
Foi nesse ponto de viagem mental que encerrei a pesquisa sobre o mito de Ícaro e voltei a escrever meu texto. Tudo tem limite.
Newsletter de casa nova
Com esta edição, inauguro a nova hospedagem da ~ marolinhas ~, apelido que dei pra minha newsletter. Quem leu a edição anterior viu o custo que eu estava tendo para que meus e-mails chegassem até os assinantes. Migrei toda a minha base de dados para o Substack que é, pelo menos por hora, totalmente gratuito.
A plataforma tem menos funcionalidades (principalmente de customização de layout) do que a anterior, mas também tem outro foco: menos e-mails marketeiros e mais conversas, mais conteúdo, mais texto. Uma coisa muito legal do Substack é que você pode ler as edições anteriores que enviei, que ficam arquivadas como um blog; eu acho uma delícia essa possibilidade de acesso a conteúdo, sem ter que se afundar no buraco negro do scroll infinito de uma rede social.
Por enquanto, o Substack está adequado ao que preciso no momento. Fica a dica pra quem é autor, artista e/ou criador de conteúdo independente e precisa deste tipo de serviço :)
Ufa! Essa carta foi grande.
Rolou até receita de bolo…
Fiquem bem,
lari.
Adorei. Espero continuar seguindo