Me sinto muito desconfortável em dezembro. Tenho percebido que este é um sentimento mais comum do que imaginava, partilhado por amigos e conhecidos pelos mais variados motivos.
Os excessos do mês me pegam de jeito. Dezembro sempre me parece um carro desgovernado, ou o ônibus do Velocidade Máxima, sendo eu uma mera passageira desorientada pelo fluxo contínuo da paisagem em movimento enquanto aguardo ansiosamente para descer do busão.
Apesar da sensação de peso, ansiedade e da alta demanda de energia para atravessar Dezembro, tem uma atividade da qual gosto muito e que me sinto mais inclinada a fazer justamente nessa época de descontrole: as ponderações.
Gosto de sentar e pensar no que foi feito, no que deixei de fazer, como levei o ano e como pretendo levar o próximo. Não encaro isso como mais um fator ansiogênico. No meu caso, me tranquiliza: em pleno ônibus desgovernado, é como fechar os olhos e prestar atenção na minha respiração, sabendo que, do lado de fora, há muitas coisas passando aceleradas ao meu lado - e que essa paisagem frenética realmente não importa. Não agora.
Negar cordialmente é uma arte.
Enquanto varria a cozinha hoje de manhã, pensei nisso: quantos NÃOS a gente precisa dizer (e aprender a dizer) para ter a possibilidade de dizer um SIM melhor direcionado, mais assertivo, mais alinhado com a nossa verdadeira Vontade.
E é sobre a VONTADE que eu dedico essa newsletter.
Desejo, necessidade, vontade
(não necessariamente nesta ordem)
Escrevo sobre uma pira totalmente enviesada pelo meu gosto pessoal: eu amo essa música.
Comida foi lançada em 1987, num período de redemocratização brasileira ainda engatinhando e com o país sendo atropelado pela inflação. Se, na época, o mapa da fome da ONU já existisse, certamente o Brasil estaria lá. A associação da música Comida com o problema da desnutrição no país tende a ser imediata e literal.
Aqui, sugiro uma outra abordagem.
Quando, no meio da música, Arnaldo (Antunes) canta desejo - necessidade - vontade, penso que os termos resumem muito bem as manifestações distintas do querer. Daí, peço licença a Arnaldo (e aos demais Titãs, mas já deu pra perceber que eu tenho um favorito, né?) para reordenar os quereres da seguinte forma:
Necessidade - Desejo - Vontade
Necessidade representa tudo o que é condição para a sobrevivência: comida (como o título da música já diz), água, segurança, moradia, acesso a saúde, etc. Sem as necessidades básicas atendidas, não há espaço para o desenvolvimento de outros quereres.
Desejo são os quereres que surgem quando estamos alimentados e em segurança, com tempo e paz (suficiente) para elaborar outros assuntos que não necessariamente nossa sobrevivência imediata: já tenho meu feijão e arroz garantido do mês, mas queria comer algo diferente hoje. Quem sabe, uma lasanha? Ou tomar uma cervejinha com os amigos? Queria experimentar algo mais gourmet. Será que vou ter limite no meu cartão de crédito para bancar um jantar naquele restaurante caro?
Daí podemos perceber as armadilhas da eterna insatisfação dando as caras. A gente não quer só comida, afinal. Mas, peraí: a Necessidade também não é, por vezes, atravessada pelo Desejo? Quando eu entro na loucura de estocar papel higiênico em casa porque entramos numa pandemia e as colunas sólidas do mundo parecem desabar ao meu redor, não seria este consumo desenfreado um sintoma de uma necessidade real (manter a bunda limpa ou me sentir segura) atravessada pelo Desejo (de ter fartura de papel disponível no meu armário ou de garantir abundância de recursos privados no meio de um caos vivido coletivamente)?
A Necessidade é sempre, e estritamente, necessária? Ou será que, a partir do momento em que temos todas as necessidades básicas atendidas, além de termos tempo para sermos seres desejantes, também perdemos a linha e, eventualmente, elevamos o patamar do que consideramos Necessário?
Quando o Desejo assume o controle do indivíduo, talvez TUDO pareça urgente de ser obtido e estritamente necessário. Os limites ficam difusos.
Então, temos a Vontade. A ponta da pirâmide na imagem acima, um pedacinho só do diagrama. Mas é ela que fica no topo. Ou deveria ficar.
A Vontade é sutil e pode ser difícil de ser identificada porque fica ofuscada pelos gigantes Desejo e Necessidade. A Necessidade toma conta da maior parte da nossa rotina - se alimentar, se limpar, se vestir, cortar as unhas, trabalhar, cuidar de humanos, cuidar de animais, limpar a casa, dormir… para acordar no dia seguinte e repetir o ritual todo, mais uma vez. O Desejo, por sua vez, é estimulado por tudo o que nos rodeia - fique bonito, fique gostoso, fique na moda, compre, performe, poste nas redes sociais, seja lembrado, seja querido, seja admirado.
A Vontade é aquilo que brota quando temos nossas Necessidades (realmente básicas) atendidas e quando silenciamos os Desejos, tão múltiplos, que nos são imputados.
A Vontade não tem a ver com instinto de sobrevivência. Tampouco se importa em ser aceita, desejada ou admirada por terceiros. A Vontade não se interessa pela opinião dos outros nem pelo status quo. A Vontade não se multiplica em mil penduricalhos de possibilidades efêmeras que mudam o tempo todo de acordo com a moda vigente. Ela é orientação fina e direcionada da mais pura sinceridade: o quê eu realmente quero fazer da minha vida.
A Vontade é aquilo que realmente queremos. E a Vontade será sempre muito íntima e pessoal. Uma grande e frequente armadilha é acreditar que se pode imitar a Vontade manifestada de um outro indivíduo para si mesmo. Um agravante é seguir a Vontade de um outro com a intenção de trilhar um caminho seguro para a própria realização material. A Vontade, como manifestação do espírito, não está nem um pouco preocupada com seu enriquecimento financeiro nem com sua ascensão social. Isso é assunto do Desejo.
Identificar sua verdadeira Vontade já é uma grande vitória. Pra isso, pode ser útil - mas não garantido - silenciar o Desejo por um tempo. Parece que estou sugerindo uma atividade meditativa? Pode ser. Talvez, nem precise ser uma meditação no sentido estrito da palavra. Contemplar pode ser o suficiente. Mas é CONTEMPLAR DE FATO: sem nenhuma meta, intenção ou objetivo pré-estabelecido. Sem fotografar o momento da “contemplação” e postar imediatamente nas redes sociais, assassinando a capacidade contemplativa no ato do post. Difícil engajar numa atitude desta natureza quando somos o tempo inteiro treinados e exigidos a dar nossa melhor performance.
A verdadeira Vontade, por vezes, pode ser difícil de ser explicada, porque não necessariamente se encaixa na lista de atividades profissionais pré-estabelecidas pelo mercado. É possível ter de inventar uma atividade nova que seja capaz de dar conta de sua manifestação. Ainda mais confuso é quando a natureza intrínseca da Vontade nada tem a ver com nenhuma atividade econômica nem com a possibilidade de capitalização - porque centramos nossa existência na realização de um trabalho remunerado por pura NECESSIDADE de sobrevivência num sistema capitalista.
A realização de uma Vontade, além de não assegurar nenhuma ascensão financeira e social, pode até gerar discórdia, expulsão da família, excomunhão da igreja, demissão de um emprego, ridicularização sofrida pela própria comunidade, e por aí vai. Mas, uma vez percebida, é difícil tirá-la da cabeça.
Dito isto, se identificar a verdadeira Vontade já é uma grande vitória, imagina ter a coragem de manifestá-la? Mais complexo ainda, de mantê-la ativa e firme ao cabo dos anos, independentemente das opiniões de terceiros e das tentações desviantes do caminho original?
Tentações, sim. Aquele trabalho de natureza duvidosa que vai contra seus valores, que te suga a alma, o tempo e a dignidade, mas que vai te pagar muito bem. São só alguns finais de semana trabalhando, só algumas madrugadas viradas, alguns assédios engolidos a seco, mas o dinheiro é incrível. Daí, você aceita (quem nunca?) e durante o martírio processo, se lembra dos motivos pelos quais você não deveria ter aceitado a oferta. Entrega feita, dinheiro na conta, e seu tempo de vida foi pelo ralo. O que vai para o ralo não volta mais. Onde estava minha verdadeira Vontade mesmo?
Tento aprender com as experiências vividas para melhor equilibrar a tríade Necessidade - Desejo - Vontade. É difícil, é um esforço constante. Mas o pior, pra mim, é esquecer totalmente da existência da Vontade (por semanas, por meses, já aconteceu até por anos) e me deixar levar pelo maremoto de sucessão infinita dos Desejos e Necessidades. É no meio da enxurrada de informações, acontecimentos e pensamentos desordenados que viramos autômatos. Vivemos no piloto automático, reagindo aos fatos, sem nem ao menos elaborá-los.
A Vontade precisa de momentos de silêncio e muita elaboração. Há quem chame Vontade de Vocação. Acho essa uma definição quase certeira.
Meus votos para esta passagem de ano é de que tenhamos a mente tranquila e limpa das vertigens das paisagens externas para identificarmos nossa verdadeira Vontade. Manifestá-la e mantê-la ativa ao longo dos anos, bem…. se for possível, será incrível. Mas vamos trabalhando sempre com o possível. Um passo de cada vez.
Muito obrigada a todos que me leram até aqui. Além da música Comida, a inspiração desse texto foi a teoria da Alma Tripartida de Platão, que está dentro do livro A República. Platão tem uma abordagem mais pragmática da alma tripartida e, no topo de sua pirâmide, insere o raciocínio lógico e os filósofos como os ideais regentes de uma sociedade desenvolvida. Eu peguei seu ponto de partida e tive o atrevimento (rs!) de ir para outro lugar. Às vezes é bom ter o atrevimento de ir para outros lugares.
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Um último aviso aos 45 do segundo tempo
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O Baralho contém 50 cartas ilustradas + 2 cartas de apoio (uma carta com sugestões de tiragens simples e outra carta com as informações técnicas de produção).
Cada caixa custa R$150 + valor do envio pelos Correios.
Pra quem ainda não conhece este projeto, neste link tem o registro fotográfico deste baralho oracular que é meu xodó.
Neste momento, tenho 9 caixas em estoque.
Aceito pagamento via PIX. As próximas postagens serão feitas nos Correios na primeira semana de Janeiro.
Pra comprar, me envie um e-mail para ola@lariarantes.com.br informando o CEP de entrega para cálculo. No momento, não estou realizando envios para fora do Brasil.
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Um abraço e bom finalzinho de 2023,
(na medida do possível dentro de um ônibus desgovernado)
lari.