Ignorar o passado é correr o risco de repeti-lo
Dia 31 de março de 2024, capa do caderno Ela do jornal O Globo: modelo brasileira lança livro de receitas.
Dia 31 de março (ou 1⁰ de Abril, não há consenso sobre a data exata) é o dia em que o golpe militar no Brasil completa 60 anos.
Alguns dias antes, uma outra mulher foi assunto de um episódio lançado pela rádio Novelo: Ana Maria Nacinovic, guerrilheira da luta armada contra a ditadura.
As memórias que escolhemos trazer à tona e as que optamos deixar guardadas no armário costuram a trama interpretativa coletiva do passado, das suas influências no presente e do que pode vir a ser no futuro. Se não contamos algo importante de nosso passado, é como se brincássemos de faz de conta; Faz de conta que esse algo horrível nunca aconteceu. Contudo, não somos mais crianças. E a omissão não é uma borracha lá muito boa. Ficam os esqueletos guardados no armário. E eles fedem.
Veja bem, nada contra a modelo do livro de receitas. Mas achei tragicômica a distância entre as linhas editoriais em meio ao aniversário do golpe militar. O episódio de podcast sobre a guerrilheira, cujo ponto de partida é a investigação do nome adotado na sua última identificação falsa, Sonia Maria Sampaio Alem, é bonito e triste, muito triste… como não poderia deixar de ser. Que mulher porreta. Brabíssima. Sua vida dava um filme.
Tenho que admitir que há um detalhe no episódio que me causou um certo desconforto ao ouvir. Em algum momento do podcast dizem, em tom de brincadeira, que a real dona do nome (a verdadeira Sonia Maria Sampaio Alem), de alguma forma, ajudou a luta pela democracia pois teve seu nome usado pela guerrilheira. E foi essa sua participação na "ajuda" à redemocratização do Brasil, mesmo que, ao descobrir que a militante morta usava seu nome, a reação imediata da dona de casa (opinião que parece que perdurou por algumas décadas) tenha sido a de que sua identidade tinha sido roubada por uma bandida.
O quanto é possível relativizar o comportamento omisso de civis na reconstrução de um passado de horrores? É possível relativizar este tipo de coisa?
Delicado. Muito delicado.
Ao ouvir este episódio, ao mesmo tempo em que fiquei de cara com a história de Ana Maria Nacinovic, não conseguia deixar de fazer comparações com um filme que vi recentemente no cinema, que me causou assombro semelhante: Zona de interesse.
O filme fala do holocausto do ponto de vista da vida familiar bucólica de um oficial da SS, diretamente relacionado ao gerenciamento do campo de concentração de Auschwitz. E, em nenhum momento do filme, vemos o campo de concentração por dentro. Mas os esqueletos no armário estão ali, ainda vivíssimos, gritando, chorando, agonizando. Enquanto isso, a dona de casa alemã segue sua vida tranquilamente, cuidando de seus afazeres domésticos.
O que achei genial no filme foi esse retrato da máquina nazista por dentro do seio familiar, com crianças arianas, bebês bochechudos, horta farta e bichos fofos de estimação. A dona de casa em questão poderia não ser tão ignorante quanto às atividades do marido, mas mesmo a ignorância daquelas crianças, daquelas flores ultrajantemente coloridas no jardim e até daquele cachorro fiel aos seus donos, não poderia ser historicamente relativizada. Aquele conforto de ser feliz em sua ignorância enquanto os corpos de outros, do lado de lá do muro, se transformam em esqueletos no armário, tem que ser postumamente problematizado, sim.
Daí meu desconforto com este detalhe do podcast. Ainda não sabemos pesar muito bem nossos próprios esqueletos, nos confundimos, trocamos os pés pelas mãos.
Tem certas coisas que não podem ser relativizadas. Quem lutou pela Ação Libertadora Nacional contra a ditadura militar foi Ana Maria Nacinovic. Foi ela quem se arriscou, quem viveu na clandestinidade, quem abriu mão de tudo; inclusive de sua vida. Digam seu nome verdadeiro.
No mais… sim, este podcast é incrível e me fez chorar.
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Pra fechar, a Mubi adicionou recentemente dois filmes no catálogo sobre o golpe militar no Brasil: O que é isso, companheiro? e Que bom te ver viva. Tenho gostado muito desse serviço de streaming e não, eu não ganho absolutamente nada pra falar dele. É só sinceridade mesmo.
Minha loja virtual segue aberta com envios para todo o Brasil. Cada compra de vocês me ajuda a manter meu trabalho. Um pedido realizado por lá é sempre uma alegria pra mim.
Um abraço,
lari.
No campo acadêmico de estudos de patrimônio desconfortável, divide-se testemunhas em vítimas, agressores e observadores. Os observadores são aqueles que não fazem nada e vivem alheios àquela realidade que não lhes afeta diretamente e são, infelizmente, a maioria de nós. Eu vi a senhora que teve a identidade roubada como uma dessas observadoras que, alheia a realidade, dentro de uma cozinha no interior do Brasil, repetiu o discurso que via na propaganda do Estado. E essa propaganda era a única informação que ela tinha acesso. É difícil para a gente imaginar atrocidades sendo cometidas e um monte de gente alheia, sem saber no que acreditar e optando por acreditar no governo. Mas se isso existe agora, em pleno 2024, quando podemos assistir a um massacre pelo mesmo celular onde assistimos pessoas defendendo dito massacre, imagina em tempos de ditadura e censura? Eu honra Dona Sonia porque ela teve a coragem de admitir sua incapacidade de julgamento no passado. Não acha?