Ter o poder de prever o futuro é bom?
Essa é a pergunta que tentará ser respondida depois desse textão.
Vai lá, pega seu cafezinho, seu biscoitinho, sua broa de milho porque essa news vai ser longa.
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Já mencionei algumas vezes neste espaço de que estou cumprindo um objetivo pessoal: ler a Bíblia na íntegra. A edição que escolhi foi a publicada pela Companhia das Letras e traduzida pelo incrível, inspirador e incansável Frederico Lourenço, acadêmico lusitano especializado em tradução de obras gregas clássicas.
Boa parte do valor dessa edição se encontra nas inúmeras e extensas notas de rodapé apontadas pelo tradutor: são muitos termos ou até trechos inteiros que divergem entre si nas versões dos manuscritos antigos dos livros que compõem a Bíblia.
A edição da Companhia das Letras optou por incluir alguns livros que foram excluídos das Bíblias canônicas católica e protestante, tornando a publicação bastante extensa. Resultado: a edição teve que ser lançada em diversos tomos. A editora optou por lançar os livros numa ordem diferente da tradicional, começando pelo Novo Testamento — obra que foi dividida em dois livros lançados separadamente. Já li ambos, mas não é deles que vou falar aqui.
Seguindo a ordem proposta pela editora, comecei recentemente a ler o terceiro livro desta empreitada, que é o primeiro livro do Antigo Testamento. Neste projeto, as antigas escrituras serão divididas em quatro livros, e este primeiro, sozinho, já conta com mais de mil páginas. É uma dedicação e tanto.
Pois bem: comecei o Antigo Testamento e estava com um certo bode, confesso, pela linguagem repetidamente recriminatória e agourenta dos primeiros profetas. O tema dos primeiros livros gira em torno de uma profecia que Deus comunica diretamente a um Profeta (seja Amós, Oseias, Miqueias, etc), de que o povo judeu não está agindo de acordo com os preceitos da religião e, por isso, Deus vai castigá-los de variadas formas.
Mas aí, meus amigos… eu cheguei no livro de Jonas.
Até uma não-cristã que não teve nenhuma educação religiosa como eu já estava ciente da existência de um tal Jonas que foi engolido por uma baleia. E aí, eu me lembro daquele livro do Italo Calvino — Por que ler os clássicos? — livro este que eu nunca li, mas conheço o teor porque este mesmo livro acabou também se tornando um quase-clássico de tão referenciado.
Quando algo é tão bom, tão impactante e atinge o miolinho tenro e sutil da alma de muita gente, pode ter certeza: isto não passará despercebido. Vai cair na boca do povo, vai reverberar, vai virar um hit. Textos clássicos não o são à toa, já disse Ítalo Calvino no seu livro que ainda não li. Os clássicos têm esse poder.
Estou aqui dizendo que Jonas, o da Baleia, é um clássico do Antigo Testamento. Mexeu comigo. E ainda me catapultou para um mito parecido em seu oposto essencial, o mito grego de Cassandra.
Agora sim, vamos começar.
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O livro de Jonas
(texto reduzido por mim usando a tradução de Frederico Lourenço como base)
Jonas foi abordado por Deus para fazer à população da cidade de Nínive o seguinte anúncio: Deus estava ciente das maldades de seus habitantes e haveria de castigá-los por isso.
[Jonas era judeu; os habitantes de Nínive, capital da Assíria, pelo contrário, eram temidos e odiados pela população judaica por cometerem hediondos crimes de guerra contra seu povo].
Apavorado, Jonas fugiu de sua própria cidade, embarcando num navio para fugir das ordens divinas. Ao partir, a embarcação foi atacada por uma ventania sem igual; era Deus quem levantava os ventos para repreender seu profeta fugitivo.
Os marinheiros ficaram aterrorizados e cada um começou a orar para apaziguar a ira de seu próprio Deus, sem sucesso. [a tripulação do barco era de diferentes origens e credos]. Um deles encontrou Jonas dormindo no porão do navio, aos roncos. Espantado, o marinheiro acordou Jonas, enxortando-o para também orar.
A tripulação começou a desconfiar de que era Jonas o responsável pela ira divina e, consequentemente, pela ventania que ameaçava afundar o barco. Jonas confessou sua fuga e se entregou para ser atirado ao mar. Assim que foi expulso do navio, o vendaval encerrou imediatamente.
Ao cair na água, Deus ordenou a um grande ser marinho a engolir Jonas [não é definido que este animal é uma baleia]. Dentro da barriga do animal, Jonas passou três dias e três noites. Por fim, o profeta decidiu rezar a Deus, prometendo cumprir seu pedido. Deus, então, ordenou que o grande animal marinho cuspisse Jonas, que caiu são e salvo em terra firme.
Jonas foi caminhando até a cidade de Nínive. Chegando lá, proferiu o aviso divino que lhe foi incumbido: dali a três dias, por culpa das maldades de seus habitantes, a cidade inteira seria destruída.
A população acreditou prontamente no anúncio do profeta: todos seus habitantes iniciaram um rigoroso jejum e entraram em penitência, orando a Deus para que fosse misericordioso com eles. Até o rei da cidade foi humilde e submisso.
Passados os três dias, nada aconteceu à cidade; Deus poupou Nínive pelo sincero arrependimento de seus habitantes. Jonas, ao ver que nada aconteceria, foi tomado por profunda tristeza e rezou a Deus, confuso: “Por quê o aviso que me comunicaste antes mesmo de sair de minha cidade não foi cumprido? Por quê me envolveste nesta anunciação se já éreis misericordioso o suficiente para perdoá-los? Estou tão triste que prefiro morrer."
Ao ouvir as queixas de Jonas, Deus disse: “Será que te entristeceste tanto assim?"
Jonas saiu da cidade e armou uma tendinha a alguma distância de lá, de onde podia observar Nínive incólume. Por lá, ficou amuado a olhar a cidade de sua profecia não cumprida. Foi então que Deus ordenou que nascesse uma planta - uma aboboreira - aos pés da tenda de Jonas, e que subisse por cima dela para lhe dar uma gostosa sombra.
A aboboreira e sua sombra deram grande alegria a Jonas; porém, na manhã seguinte, Deus secou a planta usando um verme; depois, ordenou um sol escaldante para observar a reação de seu profeta.
Mais uma vez, Jonas foi tomado por profunda tristeza e renunciou à vida, dizendo: “prefiro morrer”.
Deus, novamente, questionou a tristeza do profeta, e disse:
“Tens pena da aboboreira, que não plantaste e não te esforçaste para que crescesse; Eu, por outro lado, não haverei de poupar Nínive, a grande cidade na qual vivem mais de cento e vinte mil pessoas e muitos animais?"
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A melancolia do Profeta Acreditado
Jonas relutou em acatar a ordem recebida por Deus; era um profeta que não queria profetizar. Depois de fugir, perecer e cansar, decidiu aceitar seu destino e cumprir o mandamento divino - mesmo que tivesse que enfrentar uma cidade inteira. Uma cidade, aliás, que não era sua; cujo povo, assírio, oprimia e violentava o seu. O quê Jonas tinha a ver com essa gente? Por quê Deus escolheu um judeu para ser o mensageiro de notícia tão catastrófica para Nínive? Por motivos de força maior, Jonas aceitou seu papel e foi executá-lo. Porém, para a surpresa do leitor (ou, pelo menos, para a minha), os habitantes acreditaram imediatamente na sua anunciação. Acreditaram com tanta certeza que rapidamente aderiram a um plano-emergencial-de-mudança-de-comportamento-drástico-para-expiação-dos-pecados-diante-da-ira-de-Deus. O texto não nos dá a percepção de Jonas sobre as penitências dos habitantes de Nínive, mas deixa claro que o profeta tinha uma falsa expectativa: a profecia a ser anunciada era inevitável.
Contudo, a cidade de Nínive foi arrebatada por tamanho arrependimento que conseguiu obter a misericórdia divina; no fim, nada aconteceu à cidade. Será que não era este o plano original de Deus? Conseguir uma mudança radical de atitude por parte daquelas pessoas?
Voltemos a Jonas.
Jonas não queria ser profeta, mas teve que ser. Quando aceitou seu fardo, incluiu no seu entendimento de que a profecia era inevitável, irrevogável, insubstituível. Não considerou uma possível mudança brusca de atitude por parte dos condenados e não via sentido em ser portador de uma profecia que poderia ser revertida.
Jonas previu um futuro condicionado: caso os habitantes de Nínive continuassem agindo daquela maneira, Deus enviaria desgraças; mas houve mudança de comportamento, desejada e arquitetada por Deus, e alcançada através de tamanha ameaça.
Jonas ficou confuso e perdido no seu papel. Queria ele, no fundo, ter acertado a previsão e ver a cidade inimiga perecer pela ira divina?
Não sabemos se Jonas ficou feliz ao ver que era prontamente ouvido e acreditado pela população; isso é curioso, pois uma das características dos profetas na literatura é ser desconsiderado, ridicularizado, tratado como louco (oi, Cassandra, já chegamos em você). Por outro lado, sabemos, repetidas vezes no texto, de um certo estado depressivo que toma conta do profeta, anunciador de algo que não se concretiza.
Durante o acampamento de Jonas, Deus usa de uma planta para instruí-lo de suas escolhas. Finalmente, temos um vislumbre de felicidade no nosso triste profeta; porém, Deus mata a plantinha como forma de executar esta instrução. Jonas fica tristíssimo e diz, mais uma vez, que prefere estar morto.
Quer ler livro fofinho, pega outro pra ler e não o Antigo Testamento.
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A melancolia da Profetiza Desacreditada
Jonas relutou em ser profeta; Cassandra, por outro lado, desejou o dom.
Assim que terminei o livro de Jonas, lembrei imediatamente do mito grego de Cassandra. Os mitos gregos, como os livros bíblicos, possuem diversas versões com pequenas ou maiores alterações. Aqui, para encurtar as comparações, vou me ater a uma delas.
De acordo com o mito, Apolo se encantou pela beleza e inteligência de Cassandra, filha dos reis de Tróia, e propôs à mortal um acordo: ele lhe concederia o dom de prever o futuro com clareza e precisão e, em troca, ela deveria ceder aos seus avanços amorosos.
Cassandra aceitou o dom ofertado, mas se recusou a cumprir a sua parte do acordo. Furioso, Apolo castigou a mulher da seguinte forma: manteria suas visões proféticas, mas ninguém, jamais, acreditaria nelas.
Cassandra, diferentemente de Jonas, não era ouvida.
As profecias de Cassandra, contrariamente à história de Jonas, eram tiro e queda: ninguém acreditava, mas todas aconteciam, infalivelmente.
A previsão mais famosa da profetiza dizia respeito à sua própria cidade: Cassandra previu o cavalo de madeira como sendo um presente de grego, responsável pela derrocada de Tróia. Mais uma vez, ninguém deu ouvidos à mulher; a cidade permitiu a entrada do cavalo de madeira em seus domínios, o exército grego saiu de dentro do cavalo e dominou Tróia com violência.
Jonas foi ouvido e salvou, a contragosto, uma cidade da qual não gostava; Cassandra não foi ouvida e não pôde salvar seu próprio território.
Ambos pereceram sofrimentos terríveis por conta de suas profecias; Jonas caiu em estado melancólico profundo e não quis mais viver; Cassandra sofreu mais: viu sua cidade ser destruída, sofreu violências diversas, foi prisioneira de guerra e, por fim, assassinada.
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Afinal, ter o poder de prever o futuro é bom?
De acordo com estes dois textos antigos, não muito.
Existe um ponto em comum entre as duas histórias: Jonas e Cassandra são apenas humanos, mas ganham acesso imediato ao poder extraordinário da previsão.
O dom concedido aos profetas foi instantâneo, sem iniciação, sem grupo de estudos, sem acompanhamento de professor qualificado, sem tempo para testar até onde ir e quando parar. Inclusive, impossível parar: ambos eram acometidos mentalmente pelas visões de futuro, sem nenhuma necessidade de artefatos, cálculos ou outro instrumento de previsão.
Terrível, não?
Contudo, dotados de um poder incomum, Jonas e Cassandra continuaram sendo apenas humanos, com todas limitações que caracterizam esta condição. Imagina ser apenas um humano mas ter acesso a visões de futuros catastróficos? Tendo que segurar essa marimba sozinhos, os dois padecem psiquicamente.
As cidades afetadas pelas previsões, por outro lado, sofrem outra dinâmica: Nínive encontra salvação porque deu ouvidos à profecia; Tróia poderia ter se salvado caso tivesse prestado atenção.
A conclusão que chego ao fazer essa análise comparativa dos dois mitos é agridoce. As comunidades parecem se beneficiar mais da capacidade preditiva; o duro é que alguém tem que ser o profeta.
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Obrigada por me lerem até aqui!
Sei que alguns oraculistas assinam esta newsletter. Se puderem, dêem seus pitacos nos comentários: quanto de verdade vocês suportam nas suas previsões?
Prometo que, em breve, voltarei aos desenhos das cartas do meu Tarot.
Um abraço!
lari.
Eu amei demais esse texto. Como oraculista, dificilmente coloco alguma questão sem que a pessoa tenha que fazer nada a respeito. Na minha mesa, todo mundo sai com dever de casa. E, até aqui, mesmo que as profecias não aconteçam, meus consulentes sempre têm sinais de que elas teriam acontecido caso eles não tivessem agido.
Uma trivia interessante sobre o mito de Jonas é que ele também pode ser associado à uma estrela fixa importante na Astrologia chamada Fomalhaut, a boca do peixe https://titividal.com.br/estrelas-fixas-estrelas/fomalhaut-a-guardia-do-sul/
https://www.constellationsofwords.com/?s=fomalhaut
É uma estrela muito associada a profecias e quem tem essa estrela forte no mapa, precisa tomar cuidado com o que diz, porque tende a ser levado em consideração (pro bem e pro mal). O peixe morre pela boca, né?
Beijos, Lari!
Uau!
A-d-o-r-e-i!