Em meados de Julho, tirei uma semana de férias e fiz uma viagem curta com meu companheiro. Alugamos uma casinha no meio de uma plantação familiar de café no Alto Caparaó, em Minas Gerais. Nosso plano era subir o Pico da Bandeira.
Com 2.892 metros de altitude, o Pico da Bandeira é o terceiro ponto mais alto do território brasileiro; e lá fomos nós, eu e Rafael, adentrar o interior de Minas, bem na fronteira com Espírito Santo, em meio a muitas estradas de terra vermelha e intermináveis plantações de café.
✤ ✤ ✤
Sempre gostei de caminhar na natureza. O hábito começou nas férias de infância passadas no sítio dos meus avós, no interior do Norte Fluminense. Eu, criança urbana que vivia num apartamento minúsculo, quando chegava na roça ficava encantada com tanto espaço.
Em torno da casa dos meus avós era tudo espaço: um quintal enorme, alguns cultivos agrofamiliares, muito pasto para os bois e muito mato. Mas é preciso esclarecer que não era, exatamente, um espaço de natureza; Mata nativa, para a geração dos meus avós e dos que vieram antes deles, era mato comum. Derrubava-se árvore para plantar pasto pros bois. As poucas espécies que eram mantidas no quintal tinham um sentido utilitário: esta aqui dá frutos, esta ali dá bucha vegetal, esta outra tem uma casca ou folha medicinal. Portanto, o cenário das minhas férias de infância era este: muito espaço, mas espaço desmatado, tomado em geral por pasto e um pequeno gado.
Foi em alguma dessas férias que, junto dos meus primos, eu comecei a subir morros. Começamos por um pequeno morro desmatado que ficava em frente à casa dos avós. Nestas empreitadas morro acima, subir era, em si, a finalidade, a grande aventura infantil. Claro que, ao chegar no topo, tem-se uma vista e uma sensação de conquista; mais tarde, na época que começaram a circular os primeiros telefones celulares, era preciso subir o morro da casa dos avós para pegar algum traço de sinal telefônico.
Entretanto, subir morros apenas para conseguir falar ao telefone é o mesmo que manter algumas árvores de pé no quintal apenas pelo seu sentido utilitário.
Subir montanhas não tem nada de utilitário. É algo de outra ordem.
✤ ✤ ✤
Já adulta, tomei o gosto por trilhas na natureza. O objetivo nunca foi me desafiar, tentar algo cada vez mais difícil (para quê?). Eu gostava, simplesmente, de me embrenhar no mato. Se possível, no silêncio. E ficar ali, andando. O ganho, se é que é adequado usar este termo, era a atividade em si mesma.
Claro, a maioria das trilhas leva a algum lugar: um mirante, uma cachoeira, uma gruta. Ou a um cume.
Há quem toma o gosto por subir montanhas. E trilhas deste nível, a depender da altitude de subida, exigem um pouco mais do caminhante. Por quê investir tanta energia nisto?
Eu diria: pela experiência.
Se fosse apenas uma questão de saciar a curiosidade, a internet resolveria: podemos facilmente acessar imagens e vídeos em alta resolução de qualquer lugar do mundo, por mais remoto que seja o local pesquisado.
Mas uma imagem é sempre uma imagem, e não a coisa em si. E a coisa em si é feita não só de sua aparência, mas de seus sons, seus cheiros, suas sensações térmicas, suas variações temporais. Além das suas características materiais, há seu campo sutil de existência: aquilo que é percebido mas, racionalmente, não explicável.
Uma coisa é ver vídeos de Machu Picchu em Full HD. Outra coisa, completamente diferente, é visitá-lo — de corpo inteiro.
Não tem como falar de montanhas importantes sem abordar seu aspecto numinoso, aquilo que escapa completamente de qualquer sentido utilitário, recreativo ou competitivo. Algumas montanhas são mágicas. Machu Picchu é uma delas.
✤ ✤ ✤
Há oito anos atrás fiz uma viagem inesquecível ao Peru. Um dos roteiros foi a trilha de Salkantay, uma caminhada que levava cinco dias e que terminava em Aguas Calientes, a cidade-base para a subida de Machu Picchu.
Machu Picchu é um dos pontos turísticos mais visitados da América do Sul. De fato, quando meu grupo de trilha chegou na montanha, o local estava cheio de turistas; a imensa maioria deles não havia feito nenhuma peregrinação. Existem vários meios de transporte que facilitam o acesso. Não era o nosso caso: estávamos caminhando há cinco dias, passamos por variações climáticas intensas, ficamos dias imersos na natureza, sem sinal de telefone nem energia elétrica.
Sei que a experiência de quem chega a uma montanha depois de uma longa caminhada é, no mínimo, bem diferente de quem chega sentado numa van. O veículo, facilitador de acesso a quem tem mobilidade reduzida, atrapalha outras coisas; entre elas, experienciar o tempo, a caminhada, as variações sutis do percurso.
A montanha sagrada inca é tão incrível em sua grandiosidade — e não falo de altitude aqui, mas daquilo que nenhuma unidade de medida humana pode avaliar — que nem a quantidade de visitantes conseguia abafar a sua potência. Mesmo quem fez a caminhada no mesmo grupo vivenciou uma montanha diferente. Montanhas mágicas são entidades de poder imenso, inclusive nas suas possibilidades de experiência: cada peregrino experimentou a sua própria.
Nesta viagem, foi importante para mim fazer a trilha de Salkantay até a subida de Machu Picchu acompanhada de guias locais, descendentes dos quéchuas; foram eles que fizeram a ponte entre nós, forasteiros, e as tradições andinas relacionadas aos locais que visitávamos. Em tempos anteriores à invasão espanhola, havia uma história riquíssima ali. E eu fiquei encantada com o fato de que os guias dominavam sua própria história e mantinham viva sua língua originária. Por outro lado, senti uma pontada de tristeza: minha família descende de indígenas, está estampado no meu rosto desde criança e essa aparência me rendeu alguns apelidos duvidosos (Pocahontas, tailandesa); porém, o conhecimento foi perdido: não temos certeza nem de qual etnia eram nossos ancestrais.
Eu amei o Machu Picchu. Infelizmente, nenhuma das fotos que tirei foi capaz de traduzir em seus megapixels o que eu experienciava ali, naquela montanha sagrada. A potência ficou registrada como pôde: na impressão que deixou na minha memória.
✤ ✤ ✤
Oito anos depois, em 2024, o plano era subir o Pico da Bandeira.
Esta foi uma viagem quase-espontânea. Digo quase, porque exigiu sim algum planejamento: precisávamos organizar o material de trilha necessário, as vestimentas adequadas e o tempo de percurso. No mais, nossa pesquisa sobre o Pico da Bandeira antes da subida foi rápida e bem pragmática.
Foi durante a viagem que descobrimos o mais importante: o Pico da Bandeira é uma montanha sagrada para os povos originários da região que, hoje, chamamos de Brasil. Portanto, iríamos subir uma montanha mágica.
Eu e meu companheiro não tínhamos ideia da história pré-colonial do Pico da Bandeira. Diversos grupos indígenas realizavam peregrinações até o Pico com propósitos religiosos e espirituais antes da colonização varrer este registro, quase que por completo, da memória local. Tanto que, no Parque Nacional do Caparaó, onde se encontra a trilha de acesso e a montanha, não encontrei um só registro ou placa explicando sobre a história do antigo caminho de peregrinação indígena. Nenhuma menção oficial na área de preservação da ICMBio foi feita sobre a memória da existência dos povos originários no local. Muito estranho.
A nossa desinformação era tanta que, em uma trilha de acesso a uma das várias cachoeiras da região, do lado da fronteira de Espírito Santo, encontramos a seguinte placa:
Na hora, não entendi a associação. O quê que tem a ver Machu Picchu com aquela região da Serra do Caparaó?
Só depois de ler, por acaso, alguns registros muito vagos que restaram sobre a peregrinação indígena ao Pico da Bandeira, me dei conta: ambas montanhas são consideradas sagradas pelos povos originários.
Diferente da montanha sagrada andina, a região da Serra do Caparaó não manteve a sua memória pré-colonial; o site oficial da Prefeitura da cidade onde ficamos hospedados, Alto Caparaó, afirma que a região começou a ser povoada apenas em 1900, por pequenos agricultores; nos fins do século XX, as plantações de café foram se multiplicando e se especializando, chegando no que se tornou hoje: uma das grandes produtoras de cafés especiais do Brasil, com premiações e reconhecimento internacional.
Desnecessário dizer que eu e Rafael voltamos para o Rio de Janeiro com vários sacos de cafés especiais. Contudo, foi perturbador verificar que a existência indígena na região só sobreviveu no nome: Caparaó. Assim como no Parque Nacional do Caparaó, não encontramos nenhuma explicação minimamente embasada na pequena cidade sobre seus ocupantes originais. As poucas menções, quando haviam, eram invariavelmente vagas: havia índios aqui. Que etnia? Não sabemos. Quais eram seus costumes? Tampouco. Quando foram expulsos embora? Não sei ao certo. Algo muito parecido com a memória de minha própria família sobre nossos ancestrais indígenas. Havia um índio, ou alguns, ou muitos, em nossa árvore genealógica. Quais seus nomes, suas origens? Não sabemos. Perguntas para sempre sem resposta.
Apesar de tudo, a memória ancestral, danada e teimosa, dá suas voltas. Será que um antepassado meu fez a peregrinação ao Pico, muito antes dele ser renomeado de Bandeira? De onde vem essa mania de me embrenhar no mato? Por que aproveitar o tempo das férias para subir montanhas? Por que estou levando tanto tempo para digerir a subida da montanha da Serra do Caparaó?
✤ ✤ ✤
Pelo lado de Minas Gerais, é possível subir o Pico da Bandeira de dois modos: pernoitando numa área de camping no meio da trilha ou fazendo o bate-e-volta no mesmo dia.
Como não temos barraca de acampamento, eu e Rafael optamos por subir o Pico da Bandeira fazendo o bate-e-volta, subindo e descendo tudo no mesmo dia. Essa opção incluía um certo estresse com relação ao horário do pôr-do-sol. Havia a possibilidade de terminar a trilha de volta dependendo de lanternas, com o adicional climático: fomos no inverno, o que significa que, à noite, a temperatura cai consideravelmente.
Na véspera da subida, eu dei uma leve surtada. Dormi mal e tive pesadelos. Acordei antes do despertador tocar. Estava tensa.
Quando o dia amanheceu, nos vestimos para o frio e subimos.
A primeira metade da subida foi linda. O caminho ia margeando um rio com várias cachoeiras. Em alguns pontos, era possível acessar o leito de água e curtir um banho, mas fazia um frio da porra e estávamos com os horários cronometrados de caminhada para não pegar a volta no escuro. Um céu incrivelmente azul, uma vegetação quase jurássica de tão pitoresca, e tudo isso sendo curtido a dois. Não encontramos nenhuma pessoa neste trecho até o Terreirão, que é a área de camping de quem opta pela trilha com pernoite.
Chegamos ao Terreirão no horário previsto, duas horas após o início da subida. Fizemos um lanche, usamos o banheiro, vimos os outros caminhantes desmontando suas barracas. E seguimos para a segunda parte… que foi bem diferente da primeira.
Neste trecho, a paisagem era dominada por outro elemento:
pedra, pedra, pedra.
Uma subida de pedra interminável.
Eu já estava cansada da primeira parte, normal. Mas comecei a passar mal. A pressão baixou. A náusea chegou. Na bolsinha de remédio que levei, não havia nada para enjoo.
Eu, que já tinha ido ao Machu Picchu, não dei a devida importância a um possível mal-estar na altitude do Pico da Bandeira. Fui ignorante e subestimei a Montanha de meu próprio território. E acho que ela me deu… um toque.
Os últimos trinta minutos de subida foram terríveis pra mim. Quase desisti. Foi então que alguns caminhantes passaram por nós, e eu pedi ajuda: moço, você tem alguma coisa para enjoo aí?
Eis que surge um ser de luz, no meio da trilha, no meio do nada: um homem andava rumo ao Pico; e ele tinha na mochila uma garrafinha de Pepsi. E me deu.
Veja bem, isto não é uma publi. Mas aquela singela garrafinha de 200ml de Pepsi foi o combustível FUNDAMENTAL para me fazer terminar aquela caralha de subida de pedra. Beber metade daquela garrafinha foi o suficiente para sentir minha alma aterrisar de volta ao corpo cansado. Logo eu, que não bebo refrigerante, fui salva por um. As voltas que a vida dá, não é mesmo?
Terminamos a subida, chegamos ao Pico. A vista que encontramos foi esta:
Pois é. Cercados de neblina por todos os lados. Não dava para ver nada. Ficamos irritados? Não! Rimos à beça: da situação, de nós mesmos, do frio e dos percalços do caminho.
Passada a pedreira, sentada sob o marco-cruz, me dei conta de que subi o terceiro ponto mais alto do Brasil. Ainda estava meio atônita com a experiência.
Então, descemos. Concluímos a trilha dez minutos antes do pôr-do-sol. E passamos dias e dias falando do Pico da Bandeira, numa longa digestão compartilhada da nossa experiência.
Eu gostaria de saber seu nome original: como era chamada esta Montanha Sagrada por seus peregrinos indígenas? Que espécies de rituais se realizavam ali? Que histórias se desenrolaram nestas peregrinações? Havia um marco simbólico em seu cume ANTES daquela cruz colonizadora?
Levando para um lado mais pessoal: será que minha subida teve alguma motivação inconsciente, ancestral?
✤ ✤ ✤
Uma montanha mágica é uma entidade. Não é mera paisagem, visto que não é passiva, muito menos inanimada. É dotada de personalidade própria, capaz de te convidar, te desafiar, te acolher ou te expulsar. A experiência vai depender não somente das intenções de quem realiza a subida, como também do humor da montanha. Sim, montanhas mágicas têm um incrível senso de humor. Você duvida?
✤ ✤ ✤
Alguns links que eu gostaria de compartilhar nesta newsletter:
✤ ✤ ✤
Eu poderia triplicar o tamanho desta newsletter de tão encantada que ando com o tema das Montanhas Mágicas. Pensei em citar algumas referências do cinema, da literatura, da música; opto por deixar aqui apenas o que vivi, subindo montanhas.
Se esta newsletter agrega algo de relevante para você, considere fazer uma contribuição de qualquer valor para a chave pix: ola@lariarantes.com.br
Agradeço imensamente qualquer ajuda ♡
Você já teve alguma experiência com Montanhas Mágicas, Sagradas, Numinosas? Já desconfiou que alguma ação sua teve motivação ancestral?
Me conta nos comentários.
Um abraço,
lari.
Gosto de caminhar na natureza. Antes de começar a ler seu texto, não dei a devida importância, a que você também não tinha dado à montanha.
Afinal, é só o relato de uma montanha como qualquer outra.
Fui pego de jeito. Não é só um relato, como também não é só uma montanha. Me deixou pensativo.
Um amigo meu tem uma família que mora em Alto Jequitibá - MG. Eles produzem café na sua propriedade. Falei pra ele subir o Pico da Bandeira.
"Não, velho, ele respondeu, não é simples. Você precisa de roupa apropriada, de planejamento."
Com seu relato ficou mais fácil entender isso.
Parabéns pela trilha e pelo texto.
Valeu!
Eu sonho em fazer essa trilha no Peru! E teu relato me faz confirmar que eu PRECISO fazê-la. Eu também amo estar numa trilha no meio do mato. É uma paz inexplicável. Uma montanha que eu subi e me emocionou muito foi na Albânia, no caminho para Teth. Foi um dia de caminhada para atravessar 16 km. Foi desafiante e muito recompensador. Fiquei por dias com essa experiência na cabeça, assim como vcs depois do pico da bandeira.
Adorei te conhecer aqui. 🤗