Oi, gente, como estão por aí? Abril foi pesado e acredito que geral sentiu — materialmente, emocionalmente, psicologicamente. Maio também não começou nada leve e trouxe à tona sofrimentos coletivos. Vivemos em tempos saturninos. Apesar da dureza das limitações impostas, o que resta é dar conta da rotina. Dar conta: trabalhar, cuidar da alimentação, da saúde, do sono, do básico. O momento não está propício para vôos altos, e acredito que essa é uma percepção já amplamente compartilhada, mesmo que intuída de forma bastante tímida. Aqui estou eu, dando meus pulos de galinha de asa curta, do jeito que dá: enviando mais uma newsletter sobre o processo criativo do meu baralho de Tarot. Porque é preciso continuar…
Então a gente continua, mesmo sem ter garantia de nada.
Chegamos na terceira carta, uma ferramenta artística por excelência. Ela é criativa, ela é acolhedora, ela é cheia dos encantos — tudo isso sem esforço, seguindo o fluxo das marés do jeitinho que ela gosta. Ela tem suas alegrias mas também tem seus dias tristes, podendo mergulhar em profunda melancolia. Guarde suas lâminas, Ás de Espadas: as águas vão rolar.
Como falei na newsletter anterior, os Ases do Tarot funcionam como ferramentas de saberes e habilidades especializadas. E, já que estamos falando da ilustração de um baralho de Tarot, o Ás de Copas está duplamente implicado no processo: primeiro, pelo caráter artístico do projeto, tratando-se da minha interpretação visual de cada Arcano. Copas é o naipe das manifestações artísticas, cujo objetivo principal é a experimentação, a fruição daquela criação. Já no naipe de Ouros, existe um caráter forte da arte de saber fazer, o domínio da técnica, que é um outro viés das artes — mas chegaremos lá em breve. Por hora, resta saber: curtir uma música, se emocionar ao ver um filme, se encantar com uma pintura, se deixar tocar por uma obra de arte é da natureza de Copas.
E qual seria a segunda implicação deste Ás no meu processo criativo? Bem simples: o objeto em questão. O baralho de Tarot é uma ferramenta oracular. Como tal, ela é usada para fazer adivinhações, previsões, especulações, tudo isso a partir da leitura de símbolos. Tatear o que (ainda) não existe ou o que (ainda) não está ao alcance da mão e interpretar sua forma através das associações simbólicas e imagéticas das cartas: eis um atributo poderoso de Copas. É da água mergulhar nos conteúdos do inconsciente e trazê-los à tona.
Ás de Copas
Depois dos rigores e limites impostos pelo Ás de Espadas, mudo vertiginosamente de ambiente; tomo o Ás de Copas como fonte de criatividade e — por que não? — fruição. Afinal, é preciso curtir o processo.
Assim como uma semente contém a possibilidade da árvore dentro de si, os Ases do tarot contêm toda a potência do elemento que representam. O Ás de Copas é a semente do elemento água.
Venha aqui, pegue um banquinho. Vamos prosear? Como você está? Não é pergunta retórica: eu realmente me importo. E sinto muito. Sinto tanto que me confundo. Eu sinto tudo, como se fosse capaz de vestir sua pele. Eu pressinto também: coisas indizíveis do além. A intuição me atravessa, a saudade me invade, a paixão me atropela. De olhos fechados, flutuo; não tenho uma direção exata. Embaixo da água a visão torna-se turva e se distrai com efeitos de distorção. Como peixinho no fundo do mar, brinco com ilusões de ótica. Eis um oceano de possibilidades infinitas.
O sonho é meu domínio e não importa se é vivido acordado ou adormecido. Expansão dos sentidos ou embriaguez profunda? Difícil ter clareza ao nadar nestes mares. Por isso, cuidado: o cisne morre cantando distraído. Periga também se apaixonar pela beleza de seu último ato - enxergando o BELO em tudo, fazendo de sua tristeza uma expressão de arte.
O cálice da comunhão: beba meu sangue e compartilhe comigo. Cerimônias, festas, eventos e catarses coletivas. Ao beber este chá, aceite o convite: o espiritual se descortina. Sair de si, navegar em viagens astrais. Ter sua identidade dissolvida nestas águas, abstraída em iluminação ou êxtase. Enxergar com outros olhos que não os físicos e com outra mente que não a racional. As visões podem ser tão avassaladoras que extravasam a capacidade do sonhador. É aí que a taça quebra. Quando a represa arrebenta e é impossível pará-la, instauram-se os vícios, as dependências emocionais, o descontrole.
As águas de copas são boas de brincar. São criativas, generosas, lúdicas. Um Ás de Copas pode ser uma dádiva que chega, a grande cura, o alívio de uma dor… Tirar a sorte grande, receber um carinho, um perdão. Ou um novo amigo que se aproxima.
Eu quero é botar meu bloco na rua, cair na farra sem moderação! Não dá pra ser minimalista neste mar. Badulaques, bibelôs, adereços, enfeites: Copas não se importam com funcionalidade - e, cá entre nós, nem com qualidade: deixe os metais nobres para Ouros. Pra pular o carnaval, não precisa de jóias; precisa de IMAGINAÇÃO. Aplique glitter, coloque plumas, misture figurinos. Sua fantasia está pronta. Vamos dançar?
Como assim, um pássaro num naipe aquático?
Então, vou te contar um segredinho: Copas não se importam muito com regras. Fronteiras, limites, rigidez, verbetes classificatórios ficaram lá em Espadas. Aqui, uma baguncinha é bem-vinda e será defendida no jeitinho, no carisma, na sedução. Se for preciso apelar, até na vitimização e na chantagem emocional… mas não chegaremos a tanto.
Copas quer brincar, experimentar e misturar. Juntar elementos, criar novas combinações. Mesmo que fique estranho, extravagante ou até ridículo. Copas não tá nem aí para setorizações. Nesse caldo, um bicho pode ser uma coisa e depois ser outra. Pode ser até duas coisas ao mesmo tempo. Quem sabe três, a depender do ponto de vista. Pense num sonho: no começo, você está falando com sua tia, que vira sua amiga, que no final parece sua irmã caçula. Copas é isso: tudo o que aparenta ser, volúvel como os sentimentos, transitório como as sensações.
Escolhi o cisne porque me pareceu o animal mais adequado em vários aspectos para o meu projeto. Darei minhas explicações. Mas, primeiro, vamos falar um pouco do bicho que seria a escolha mais tradicional para representar o naipe.
O peixe é um dos emblemas da espiritualidade mais amplamente reconhecidos, provavelmente por ser um dos símbolos mais antigos do Cristianismo. O Novo Testamento é repleto de simbologias associadas ao animal. Nos textos dos quatro Evangelhos, os peixes são alimentos multiplicados através de atos milagrosos, compartilhados entre Jesus e seus seguidores; vários dos apóstolos eram pescadores, e deixam de sê-lo para seguir Jesus e disseminar sua palavra, tornando-se pescadores de seres humanos.
( Aliás, comecei meu projeto de leitura integral da Bíblia para ampliação do meu vocabulário simbólico. Indico fortemente a edição da Companhia das Letras traduzida pelo incrível Frederico Lourenço. )
E quais são os significados simbólicos do Peixe? Comunhão. Partilha. Multiplicação. Andar em bando. Tudo aquilo que se espalha e se experimenta coletivamente. Desintegrar-se em função de algo maior do que si mesmo. Fé.
Sim, o peixe está em total acordo com o naipe de Copas. Contudo, convém lembrar que COPA — a taça do naipe — não é só um mero receptáculo do elemento que rege; é também outro símbolo intrinsecamente ligado à cultura cristã, o cálice da liturgia eucarística.
Sendo assim, não vi necessidade em manter a dupla referência cristã no naipe. Afinal, Copas também fala de experiências religiosas, mas não só; também é de Copas todos os aspectos sensíveis que nos atravessam no dia a dia, dos mais mundanos aos mais sutis. Portanto, optei por um bicho que pudesse abrir margens interpretativas para além da religiosidade, já que a mesma já está intrinsecamente presente nas taças do naipe.
Um pouco de droga, um pouco de salada; Copas pode transitar de um extremo ao outro com muita facilidade, visto que é sugestionável: às modas, às sensações, ao mood do momento. E sabemos que as drogas, sejam lícitas ou ilícitas, são uma manifestação importante do naipe. O elemento Água é capaz de traduzir a experiência mística mais sublime, mas também pode alertar sobre um processo de dependência química pesada. Lembra que Copas não são Espadas: aqui, estando tudo junto e misturado, a dificuldade é justamente o discernimento.
Então, falemos do cisne.
Pensa rápido: o que lhe vem à cabeça quando falamos de cisne?
Romance. Balé clássico. Drama. Bibelô de porcelana antigo. Papel de carta. Pedalinho de lago num fim de semana. Caixinha de música tocando algo triste. Algo bonito mas, de certa forma, démodé — por ser antigo ou, talvez, apenas por demonstrar sua vulnerabilidade? Sabemos bem que expor fragilidades é correr o risco de ser ridicularizado.
E se eu te disser que essa fragilidade pode servir de fantasia ou disfarce?
Num dos mitos clássicos em torno do animal, Zeus, o todo-poderoso do Olimpo, se disfarça de cisne para poder seduzir Leda. Uma das muitas variantes da história conta que Zeus havia tentado se aproximar da moça de muitas formas, inclusive com a sua identidade original; ela nunca aceitou suas investidas. Bastou ele vestir as plumas de cisne e se fazer de manso que Leda baixou a guarda e confiou. Não só confiou, como se entregou e consumiu o ato.
Nem sempre o Cisne é um disfarce intencional, podendo ser justamente o oposto: a identidade original ainda não descoberta. Basta retomar a história do patinho feio. O filhote de cisne, cinzento e esquisito, que é ridicularizado pelo grupo de patinhos por não se adequar, tem sua reviravolta ao amadurecer e ganhar seu aspecto final: toda natural, bonita pra caramba.
O ponto em comum entre as duas histórias é a transitoriedade da forma: a aparência é capaz de mudar o status das personagens, seu papel no mundo, sua aceitação por uma determinada pessoa ou grupo social.
Em Copas, a aparência é fundamental. É o Belo que seduz, atrai e angaria admiradores.
Voltemos então para o Balé clássico. Ao pesquisar sobre o simbolismo do Cisne, caí rapidamente no perfil de Anna Pavlova, a russa da foto lá de cima. A biografia da bailarina é a encarnação perfeita da história do patinho feio. Pavlova não tinha o biotipo considerado adequado para o balé na época. Quando menina e iniciante na dança, era considerada feia, magrela, de aspecto doentio. Mas a mulher insistiu e aceitou o desafio, se tornando uma das maiores bailarinas da história. Mudou, inclusive, o padrão de beleza das bailarinas (para outro padrão tão opressor quanto o antigo). Adivinha qual era seu ato mais emblemático no balé? A morte do cisne:
Pavlova quis estudar os movimentos dos cisnes em detalhe para potencializar sua performance artística. Para isso, ela criava vários destes animais no seu lago particular, podendo observá-los de perto. Isto não era uma escolha puramente profissional. É dito em algumas biografias que ela amava animais e era tutora de várias espécies. Bem digno de Copas.
A história da bailarina é bonita e um tanto novelesca, com direito a algumas intrigas não-oficiais de bastidores, atos de caridade y outras emoções. Bem do jeitinho Copas de ser: sensibilidade e muita beleza vivida em palco.
Por último, e voltando ao começo: por quê escolher o cisne para um naipe das águas?
Porque esta é uma opção não-ortodoxa, assumindo as mesmas características do animal escolhido: fluidez e adaptabilidade. Após seus vôos migratórios, é em águas tranquilas que o cisne se alimenta, descansa e convive com os seus. É um animal, portanto, ambivalente; também possui características andróginas em sua aparência: pescoço longo e fálico, corpo arredondado, macio e acolhedor. Sendo assim, o cisne tem os aspectos masculino e feminino integrados na sua forma; é um ser que existe tanto lá quanto cá, sem contornos definidos. E essa indefinição não o impede de se sentir confortável em sua própria pele.
Por sua ampla receptividade, Copas é capaz de abraçar todas as contradições — e ainda fazer uns bons drinks com essa misturinha. Por tudo isso, o cisne foi meu animal escolhido para representar o naipe. Além de ser lindo, claro. Do jeito que Copas pede.
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Toda ajuda é bem-vinda e me mantém firme nesse projeto ainda sem nenhuma remuneração. Como falei lá em cima: é difícil inventar de ser artista nesse país, mas a gente inventa coragem e continua a criar.
A próxima carta a ser ilustrada será a mais realista e palpável dos Ases. É o próprio PIX caindo direto na conta, muito ouro, Inshalá.
Um abraço,
lari.
Maravilhoso projeto, estou adorando conhecer muito mais sobre simbolismo, amo tarô leio tb, e demais de prazeroso ver tua desenvolvimento para cada carta!
❤️