A carta de hoje chega bagunçando tudo: embaralha os arcanos, fura fila, pula degraus. Não tem regra que se mantenha intacta sob os pés saltitantes do andarilho do Tarot.
Quem é essa figura imprevisível, desconcertante, non-sense, solta no espaço do baralho?
O Louco
Eis que surge, sem aviso, uma figura excêntrica chamando a atenção. Fura a fila fazendo piada, ignorando regras e hierarquias. É o arcano sem número, que vaga errante pelas cartas: o flâneur do Tarot. Anda engraçado, tem umas tintas no rosto e guizos pendurados no corpo. O Louco é aquele que é insano o suficiente para gritar que o Rei está nu — sem medo da reprimenda de sua guarda real, mas também sem coragem: ele simplesmente não mede consequências.
Sem documentos, sem dinheiro e sem compromissos, o Louco é um andarilho distraído; caminha sem rumo, improvisa ao sabor do vento, curtindo o que a paisagem lhe traz. Por vezes, pisa descalço sobre cacos e não percebe os cortes; não se preocupa porque precisa de algo impalpável, que lhe é TUDO: sua liberdade.
Inútil tentar retê-lo em algum lugar. Como um macaquinho agitado, pula de galho em galho: diversões, novidades, experiências. Ele é como uma criança que acabou de chegar ao mundo: uma folha em branco que se depara com um universo de possibilidades. Pura fruição.
Porém, também é o marginal — aquele que não se adequa às estruturas, que não se enquadra em papéis rígidos. Foge das normas e dos padrões. É visto pelo “cidadão de bem” como o pária, mendicante, improdutivo, vagabundo, atípico. A sociedade o exclui. As famílias o evitam. Os ditos “normais” o ridicularizam.
Há uma leveza que talvez seja loucura, talvez pura ingenuidade: as galhofas do Louco atraem crianças e animais. Se manifestado através da criatividade, das artes e da inovação, ele tem maiores chances de ser bem estimado pelos adultos mais caretas.
Desorganizado, fanfarrão, a alma de uma boa festa! Nosso Arcano de trajes exuberantes — mas um tanto remendados — não pensa no passado nem no futuro: para o Louco, tudo o que ele tem pra viver é O AGORA.
O SALTO DE FÉ — sem treino, sem garantias, sem proteção — quem dá é O LOUCO.
O sujeito sem filtros sociais
O Louco é o bebê do Tarot, visto que é um sujeito que não entrou — ainda — em conformidade com as normas sociais. Pense nos primeiros meses de vida de um ser humano: o xixi e o cocô feitos a qualquer momento e na frente de qualquer pessoa; a falta de controle muscular, fazendo com que os movimentos sejam engraçados, tronchos, errantes; a falta de domínio da linguagem verbal, fazendo com que o bebê se comunique através de grunhidos, gritos ou choros; a falta de consciência dos perigos, exigindo vigilância constante por parte dos seus cuidadores; a falta de filtro social, que torna aquele serumaninho imune aos sentimentos de vergonha e constrangimento por se comportar de forma totalmente instintiva e espontânea.
O Louco (…) representa o nosso lado alegre, descomplicado, que não só não se importa se algo é perfeito ou se nós falhamos, mas experimenta alegremente coisas novas, sem medo de se envergonhar, de fracassar ou de parecer ridículo. Se não der certo, ele tentará outra vez, até conseguir ou perder o interesse. Ele é capaz de alegrar-se de todo o coração e de surpreender-se com tudo o que é possível fazer na vida e com a multiplicidade de coisas que este mundo nos oferece.1
O bebê ignora o que é considerado impróprio num determinado contexto social — e talvez, por isso mesmo, se divirta muito mais do que nós, prisioneiros da vergonha e do olhar do outro.
A Loucura enquanto condição psiquiátrica
Não dá para escapar do aspecto mais objetivo do Arcano: a loucura como estado mental.
A loucura encontra-se exatamente no ponto de contato entre o onírico e o erro; ela percorre, em suas variações, a superfície em que ambos se defrontam, a mesma que ao mesmo tempo os separa e une. Com o erro, ela tem em comum a não-verdade e o arbitrário na afirmação ou na negação; ao sonho ela toma de empréstimo a ascensão das imagens e a presença colorida dos fantasmas.2
O absurdo se torna a certeza inquestionável do sujeito insano. Não há evidências concretas que o mova de sua verdade interna; ele está completamente absorvido em seu próprio universo, repleto de imagens vindas de seu inconsciente.
Por acreditar que seu universo interno é a realidade, O Louco, sem perceber, perde o contato com os demais e acaba se isolando. Por outro lado, também é isolado pelos demais, pois fere as convenções do grupo ao descumprir com as expectativas sociais. Ele choca e desconcerta, se tornando uma presença desconfortável para muitos.
Pelo seu nível de inconsciência e por navegar à margem, O Louco se encontra num estado de grande vulnerabilidade. Despreocupado, ele se diverte sem saber que dança à beira do abismo. Ele se coloca em riscos tremendos sem sequer suspeitar disso.
Quando O Louco precisa de amparo, dificilmente irá pedir ajuda. Por estar desconectado da realidade objetiva das coisas, ele desconhece a dimensão de seu próprio abandono.
Destituídos de tudo
No aspecto material, o Arcano sem número demonstra ausências substanciais: não ter emprego, não ter dinheiro, não ter rede de apoio, não ter casa para morar. Não ter sequer documentos. O Louco extrapola os limites da pobreza: aquela trouxinha que ele carrega consigo é, de fato, TUDO o que ele possui. Se formos olhar seu conteúdo, pode ser que encontremos objetos aleatórios, miudezas catadas do chão, sucatas. Afinal, ele também não tem consciência (e nem interesse!) para discernir o que é lucrativo daquilo que não o é.
No filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders, acompanhamos a rotina de um faxineiro de banheiros públicos no Japão que vive uma vida simples, com poucas posses, uma casa pequena e poucos contatos sociais.
Este homem não é O Louco. Seu estilo de vida pode ser frugal, mas ele tem muitas coisas importantes: um emprego (e, portanto, uma função social); uma moradia (um espaço próprio e seguro, ordenado de acordo com suas prioridades); um círculo social (mesmo que reduzido a alguns colegas de trabalho e poucos contatos com sua família de origem). Ele até pode ter um padrão de vida humilde, mas não está, de forma alguma, à margem da sociedade.
Tá bom, então por que peguei este filme de exemplo?
Porque tem um Louco maravilhoso ali: o mendigo que dança na rua.
Durante suas pausas na faxina dos banheiros, o protagonista do filme observa um homem mais velho, em trajes surrados, perambulando em silêncio. Ele dança sem música, absorvido em seu próprio universo, completamente alheio ao seu entorno — e o entorno, por sua vez, também parece alheio à sua existência. O filme nos sugere que o dançarino é uma pessoa em situação de rua. O faxineiro de banheiros públicos é o único que lhe dirige o olhar durante a história: ele encontra alguém que, de fato, atravessou o limiar do mundo organizado — sem moradia, sem função social, sem direitos garantidos. Um indivíduo marginalizado.
Eu amei esse filme, mas não concordei muito com os comentários do fã-clube. Senti que as pessoas, em geral, interpretaram a história como uma ode à “pobreza” (entre MUITAS aspas), romantizando a beleza de viver com menos e se esqueceram que o protagonista, vindo de uma família RICA, virou faxineiro POR OPÇÃO. Ele teve acesso à edução e à cultura, e largou uma situação de alto poder aquisitivo porque quis. Ele teve escolha. E essa escolha fez dele uma pessoa miserável? Ou somente um homem de hábitos simples — que lê seus livros, ouve suas músicas, toma seu banho e come seu jantar no seu restaurante favorito de rua?
Achei genial a inclusão daquele mendigo dançarino na história. Mais genial ainda é o fato de que seu intérprete, Min Tanaka, é um grande dançarino do estilo Butoh. Este estilo de dança surgiu no Japão no final dos anos 1950, influenciado pelos horrores vividos pelo país durante a guerra.
O Butoh rompeu com estilos de dança tradicionais japonesas, buscando um movimento de corpo livre e visceral. Por meio de gestuais lentos e contorções grotescas, este tipo de dança invoca emoções desconfortáveis no expectador — que sente que está assistindo a um… ato de loucura?
A dança Butoh serviria como um canal de acesso à memória primitiva do corpo, permitindo que ele se dance sozinho, sem controle nem intencionalidade — um estado próximo à insanidade, no qual o corpo traz à tona o inconsciente.
A presença do dançarino esfarrapado em Dias Perfeitos dá a perspectiva concreta da existência de pessoas que se encontram verdadeiramente excluídas do sistema: por serem vistos como sujeitos indesejáveis e improdutivos, são varridos como refugo para as bordas da invisibilidade.
Um Lindo Sonho Delirante
Os delírios d’O Louco apontam para um outro aspecto muito interessante do Arcano: a força criativa bruta, em seu estado mais basal.
Por não estar submetido a filtros, o acesso às imagens do inconsciente se dá de uma forma muito direta: é um verdadeiro jorro de imagens coloridas, fluxo de consciência sem freio, personagens fantásticas de outros mundos e muita psicodelia.
A viagem do Louco é uma viagem lisérgica. Diferentemente da Lua, que também mergulha no inconsciente, o Louco não teme os conteúdos que lhe aparecem. O Louco não tem medos, lembra? Ele embarca, experimenta, desfruta e se diverte. Por não ter expectativas, ele só vai.
O Louco pode apontar esse limiar entre o artista genial e o sujeito à beira da insanidade mental. Muito se conjectura a esse respeito. Eu, enquanto artista, prefiro defender que não precisamos manifestar um quadro psiquiátrico para sermos profundamente criativos; mas tem certos autores por aí que curtem a associação entre sofrimento psíquico e criatividade artística.
Precisamos lembrar que o significado de uma carta nem sempre será literal: o Louco pode indicar um fluxo criativo abundante e transgressor, deliciosamente experimental e de vanguarda, sem que isso implique problemas de saúde mental por parte de seu criador.
Por outro lado, também pode indicar um estado alterado de consciência induzido. Uma suspensão temporária do sentido de realidade com fins meramente recreativos — visto que o Louco não tem metas nem objetivos. Ele não necessariamente busca uma revelação nem a cura de sua criança interior. Ele é o adulto-criança, e só está interessado em brincar.
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Até a próxima news!
Um abraço,
lari.
Banzhaf, Hajo (2023). “O tarô e a jornada do herói”, pág. 33.
Foucault, Michel (2019). “História da loucura”, pág. 242.
Eu gosto dO Louco, iniciando a jornada, sem lenço e sem documento.
Adorei o texto.
Um beijo.
Gosto muito desta carta Por conta disso, fico sempre fascinado com as interpretações ou leitura , que os magos e ilustradores fazem dela.