Não é fácil começar.
Ou, pelo menos, não é fácil começar um projeto que já se sabe de antemão ser lento e complicado para ser bem-feito.
Eu já estava no processo de venda da raspa do tacho dos últimos baralhos ORÁCULO (aliás, ÚLTIMA CAIXA DISPONÍVEL AQUI!), catando as caixas que restaram esquecidas aqui e ali no estoque, quando decidi tomar vergonha na cara e começar a criar outro baralho. Desta vez, será um tarot.
Há muita confusão entre os leigos sobre o baralho ORÁCULO ser um tarot. E não, ele não é. Um baralho oracular não é necessariamente um tarot. Mas um tarot é sempre um baralho oracular.
Para ser um tarot, o baralho tem que seguir uma estrutura básica: conter 22 cartas identificadas como Arcanos Maiores e 56 cartas identificadas como Arcanos Menores.
Os Arcanos Maiores possuem personagens e temas que dão conta de traduzir os grandes assuntos do mundo, dos mistérios e das experiências - imagens arquetípicas cuja profundidade simbólica é impossível de ser esgotada em palavras.
Dada sua natureza de vocabulário imagético universal, é possível jogar tarot usando apenas os Arcanos Maiores. (É o ideal? Na minha opinião, não. Mas é possível).
Já os Arcanos Menores são comumente associados aos temas da vida cotidiana, traduzindo os aspectos, digamos, mais mundanos de experiência (afetos, trabalhos, estudos, ganhos e prejuízos, saúde, tretas e o que mais couber nesse balaio). Por estarem mais próximos de nós, meros mortais preocupados em pagar boletos, podemos dizer que os Arcanos Menores dão o tom, o detalhamento, a fofoca completa sob o auxílio de uma lupa. Estes Arcanos se dividem em quatro naipes: Paus, Espadas, Copas e Ouros. Cada naipe rege um elemento e tem sua própria voz simbólica para tradução de nossas experiências.
Por fim, os quatro naipes dos Arcanos Menores se subdividem em dois grupos: as cartas numeradas (do Às ao Dez) e as cartas da Corte. Estas últimas seguem uma linha de hierarquia, experiência e domínio que cada personagem tem do seu elemento, do menor para o maior grau: Pajem (ou Valete), Cavaleiro, Rainha e Rei.
(Um parênteses aqui: as hierarquias das cartas da Corte do tarot são heranças históricas de uma Europa medieval, monárquica, patriarcal. Sim, os Reis são considerados a maior autoridade dentro de cada naipe, acima das Rainhas; e não, eu não me aprofundarei neste terreno pantanoso por hora - talvez quando chegar na criação das cartas da Corte.)
Dito isto, para que um baralho possa ser identificado como um TAROT, ele precisa atender a toda esta estrutura básica explicitada acima.
Alguns baralhos optam pela mudança de uma ou outra nomenclatura de carta (como usar Bastões ao invés de Paus, ou Princesa ao invés de Pajem, etc). Se houver mudança de nomenclaturas mas a estrutura numérica, hierárquica e, sobretudo, simbólica das cartas se mantiver a mesma, o baralho em questão continua sendo um tarot.
Ás de Paus
Então, por onde começar?
Eu poderia seguir a ordem correta dos Arcanos e começar a ilustrar pela carta nº 1, o Mago; ou ainda, pelo Arcano sem número, ou zero - O Louco. Mas, volto a dizer, não é fácil começar um projeto deste porte. Eu precisava de um empurrão, de uma injeção de energia, de um estalo. Eu precisava de um Ás de Paus.
Decidi começar o projeto pelas ferramentas principais, seguindo a ordem dos atributos pelos quais sinto mais necessidade de canalizar, por hora. Estou apelando para toda subjetividade interna neste processo? Certamente. Rs.
Assim como uma semente contém a possibilidade da árvore dentro de si, os Ases do tarot contêm toda a potência do elemento que representam. O Ás de Paus é a semente do elemento fogo.
Como um fósforo aceso, sem uso, pode não passar de fogo de palha; logo o interesse passa. Mas pense no mesmo fósforo atirado em substância inflamável: o fogareiro é certo; no calor do momento, a impulsividade pode ser a falta de freio que chamusca o outro.
Quando há falta de propósito e paixão pela vida, quando o obscurecimento, o pessimismo e a incapacidade de agir ganham força, é o Ás de Paus que a pessoa apática precisa canalizar para si.
É da natureza do fogo ser contagiante e compartilhável; Uma única vela acesa basta para transmitir a luz a outras cem velas, iluminando uma cerimônia inteira. O fogo, como a alegria, aumenta quando compartilhado.
O fogo é pólvora. Pode ser motivo de festejos coloridos no céu ou explosão violenta e impiedosa. Inflama multidões, incita movimentos coletivos. Dominado pela cólera, o elemento pode causar grandes incêndios e estragos; ou, pelo contrário, pode representar a causa pela qual se luta. Pois é do fogo lutar pelos seus ideais.
O Ás de Paus, sendo pura força volitiva, é energia vital. É força para agir, cativar, se movimentar no mundo. É ímpeto que chama para brincadeiras - e, sobretudo, competições: pois o Ás de Paus é competitivo e adora ganhar.
Usado com esmero, o fogo aquece casas e banhos no inverno; cozinha delícias e banquetes; transmuta argila em fina porcelana.
O fogo é o elemento que carrega o desejo da criação. Não se agarra o fogo com as mãos. Ele deve ser olhado e, seu calor, sentido. O Ás de Paus é minha ferramenta principal de trabalho. Por isso, é a primeira carta que ilustro do meu baralho de Tarot.
Conduzir o Fogo: Gatos Pretos e Panteras Negras
Na minha linha criativa, optei por selecionar um animal que representasse os atributos de cada naipe, e que servisse de porta-voz de seu Elemento, junto com cada Ás. O elemento Fogo, em geral, é associado à salamandra, um dos seres elementais descritos por Paracelso em suas obras alquímicas. É comum também usarem a Fênix como criatura mitológica relacionada ao elemento pela sua capacidade de renascer das cinzas. Contudo, eu queria trazer uma outra possibilidade interpretativa. Foi então que me lembrei de um certo animal que acompanha uma Rainha de Paus um tanto famosa.
Pamela Colman Smith, a ilustradora responsável pelo baralho Rider-Waite-Smith, lá no começo do século XX, incluiu um gato preto como companhia de sua Rainha de Paus. Sim, a Rainha de Paus é uma das bruxonas do Tarot - a outra, bem mais silenciosa mas cheia dos conhecimentos, é a Sacerdotisa. Gatos pretos, na cultura popular ocidental, são muito associados à bruxaria. E isto é uma faca de dois gumes, a depender do que cada um interpreta desta associação.
Muitas histórias circulam pela internet acerca da origem da perseguição de gatos (pretos, em sua maioria) nos tempos da Inquisição na Europa medieval. Entretanto, são diversas teorias e poucas evidências concretas, inclusive se a bula papal incentivava o extermínio de gatos ou não (se alguém souber de fontes CONCRETAS sobre o causo, diga aí). O FATO É: gatos pretos foram (e ainda são) estigmatizados, maltratados, perseguidos e mortos por pessoas convencidas de que os bichanos carregam algum poder oculto, maligno, de mau agouro.
Por outro lado, se retrocedermos um pouco mais na história, chegamos aos felinos cultuados no antigo Egito, tendo a deusa Bastet como grande divindade. De mulher-leoa, sua representação simbólica foi se transformando ao longo do tempo, até ser identificada como uma mulher-com-cabeça-de-gato, chegando na sua síntese mais recente: um gato em sua forma completa. Protetora do lar, potência de fertilidade, deusa de aspectos solares (como o naipe de Paus), assim era Bastet. Ai de quem maltratasse um gato no Antigo Egito: feri-lo seria equivalente a cometer um grande insulto à Deusa; um crime passível de pena de morte.
Me chama a atenção a disparidade interpretativa em diferentes épocas e culturas de um mesmo signo. O gato (geralmente preto), dotado de imenso poder sobre-humano: adorado por uns, perseguido por outros.
Não preciso dizer qual das linhas eu simpatizo.
Há um outro felino de pêlo negríssimo, e de porte um pouco maior, que não poderia ficar de fora dessa trama de símbolos costurada para meu naipe de Paus: a pantera negra.
Ao me lembrar do gatinho preto da Rainha de Paus do tarot da Pamela Smith, a associação à pantera negra foi quase imediata; talvez por ter a presença marcante de uma gata preta no meu espaço íntimo, cujo gingado, agilidade, ferocidade e capacidade de sedução - enfim, tantos atributos - me parece uma reminiscência de um ser muito parecido, porém indomesticável; majestoso, indomável, fascinante, fatal.
É engraçado costurar essas tramas simbólicas e se deparar com profundas coincidências de atributos: impossível pensar em Panteras Negras sem rememorar o partido político de mesmo nome, marco fundamental na luta pelos direitos civis da população negra dos EUA nos fins dos anos sessenta. Interessante mesmo: luta por direitos, valorização de sua identidade e engajamento social tem tudo a ver com o naipe de Paus.
Então, resta averiguar o significado por trás do famoso símbolo do movimento político; imagem esta que, ao pesquisar, descobri que foi criada por uma mulher e redesenhada por, pelo menos, outras duas.
Encontrei este artigo ótimo que conta um pouco dessa história (em inglês).
Na imagem acima, retirada do link citado, está escrito:
Seu símbolo é a “Pantera Negra”, que significa coragem, determinação e liberdade. Foi escolhido como uma resposta apropriada ao símbolo racista do Partido Democrático do Alabama, o galo branco e seu slogan, "Supremacia Branca / Pela Direita".
Coragem, determinação e liberdade. Tudo a ver com o naipe de Paus.
Ainda no artigo citado acima, há uma fala de Stokely Carmichael, um dos principais organizadores do movimento, sobre a definição da Pantera Negra como símbolo:
“Escolhemos para o emblema uma pantera negra, um lindo animal preto que simboliza a força e a dignidade dos negros, um animal que nunca contra-ataca até que esteja tão acuado na parede, ele não tem nada para fazer a não ser enfrentar. Sim. E quando ele avança, ele não para.”
Força, enfrentamento e defesa de si e de outros - mais atributos intimamente relacionados ao naipe de Paus.
Essa foi a minha linha de raciocínio para escolha do animal que iria representar o elemento Fogo no meu tarot. Eventualmente, ele poderá aparecer na sua forma mais branda, como um gato preto. Mas sempre, independente do porte, será uma pantera.
Pretendo seguir com estes textos falando sobre o processo criativo do meu tarot. Não prometo conseguir esmiuçar carta por carta (são 78 no total, misericórdia!). Vamos vendo o que é possível fazer, dentro das minhas capacidades limitadas de serumaninho normal.
O meu tarot ainda vai demorar um bocado para sair, e o Baralho ORÁCULO está prestes a esgotar; contudo, não se esqueçam: tenho prints avulsas em vários tamanhos da série ORÁCULO à venda na minha loja, prontas para revestir paredes com artes carregadas de significado. Tem um aniversário de uma pessoa querida chegando e você não sabe o que dar? Então, lembra da minha lojinha ♥ Cada compra de vocês ajuda a manter o meu trabalho em atividade. Envio para todo o Brasil!
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Um abraço!
lari.
Lari, AMEI saber dessa nova empreitada e já aguardo ansiosa por esse tarot, Sua explicação para a simbologia do gato preto foi maravilhosa e, se me permite, vou acrescentar mais uma: para as antigas civilizações pré-colombianas, o jaguar - ou como a gente conhece aqui, nossa onça, nas versões pintada e preta - era um animal sagrado também e costumava ser associado à polaridade masculina nos templos, especialmente às pirâmides do Sol. Eles acreditavam que a invocação do animal poderia atribuir ao devoto as características do animal: a astúcia, a visão de longa distância (real e metafórica), a habilidade e a destreza, enfim. Sei que vai ser uma tarefa hercúlea, mas já quero todas as suas reflexões nessas simbologias. Beijos!
que pena que não teremos mais o oráculo, ele é um dos meus sonhos de consumo 🥲 mas adorei esse texto e aguardo ansiosa pelo seu tarot