Nesta newsletter, chegamos à criação do quarto Ás do meu baralho de Tarot. Justo ele, o mais lento, o mais robusto, o mais rycoh, e que pode demorar muito pra brotar: tinha que ser o Ás de Ouros o último a entrar na festinha. Com licença, Ás de Copas, vim para concretizar. Mas como terra seca não é muito boa para o cultivo, poderia fazer a gentileza de me regar um pouco?
Seguindo a linha do meu processo criativo, optei por criar as ilustrações do meu Tarot a partir das cartas que considero as ferramentas fundamentais, os Ases. Cada Ás é dotado de qualidades específicas, adequadas a determinadas situações. Eis minha última ferramenta, o Ás de Ouros.
Podem chamá-la de lenta. Mas quando ela chega exibindo seus tesouros, meus amigos, todo mundo quer. Ela é o valor mensurável, palpável, inegável. Afinal, somos seres feitos de carne, circunscritos num plano material. Pouco ou quase nada sabemos sobre outros planos; podemos especulá-los, adivinhá-los, filosofar sobre. Porém, na grossura espessa da rotina, durante a maior parte da nossa existência, lidamos com o concreto e por ele somos limitados: sinto fome, preciso dormir, acordo para trabalhar, penteio meus cabelos, visto minha roupa, estou sem saldo na conta, preciso comprar feijão. Neste terreno sólido, quem pisa e manda é o naipe de Ouros. Sem ele, nada se concretiza no plano material.
Este Ás é Gaia, Pachamama, Cornucópia, a fartura que brota da natureza; é ele quem provém comida, cama confortável e um teto para morar; mas também pode ser o mercado financeiro, a carteira de investimentos, os boletos a serem pagos, as dívidas e os abismos oriundos do acúmulo de capital. A esta altura, já sabem: todo naipe é uma moeda de dois lados. E o naipe de Ouros é a própria moeda ;-)
Ás de Ouros
Após uma parada idílica no poético Ás de Copas, passo para a criação do Ás de Ouros para que o projeto não seja somente uma efêmera inspiração: é preciso ter os pés no chão e trabalhar. É no naipe de Ouros que encontramos o artesão aplicado do Tarot.
Assim como uma semente contém a possibilidade da árvore dentro de si, os Ases do tarot contêm toda a potência do elemento que representam. O Ás de Ouros é a semente do elemento terra.
Acostumado a chegar por último, não apresso o passo. Continuo tranquilo, devagar e sempre. Os outros toleram minha demora; sem minha presença, tudo que desejam são quimeras, apenas castelos no ar. Mantenho a paciência com os ansiosos, os insensatos, os atropelados, e lhes explico em voz calma e um pouco cansada: fruta não se come verde, é preciso deixá-la maturar.
São os bois quem carregam a carroça, e não o contrário. Não espere agilidade deste condutor, e sim solidez: persistência, assiduidade, trabalho e, sobretudo, eficiência. O que o Ás de Ouros promete, ele entrega. Tão solidamente incontestável quanto uma pepita pousada na palma da sua mão.
O naipe de Ouros tem seus tempos, seus ciclos, suas estações. A vida dará suas lições a quem não respeita o tempo das coisas. Uma colheita farta não se desperdiça, uma semeadura não dá resultados de pronto; a planta, para vicejar, precisa de atenção constante: rega, adubo, poda, e um olhar atento e minucioso aos pequenos sinais de declínio. É a terra de Ouros a grande gerente capaz de nutrir um brotinho e fazê-lo crescer em árvore frondosa.
Quem dá a forma é a terra; é ela quem gera tudo aquilo que tem tamanho, cheiro, gosto, tato. É este o elemento do PALPÁVEL: aqui, não trabalhamos com o que PODERIA ser, apenas com o que, de fato, É. Em Ouros, é preciso VER para CRER — e ver, aqui, inclui pegar o objeto nas mãos, pesá-lo, senti-lo em toda sua concretude material. Por fim, dá-se um preço.
Por ser um elemento materializador, também é materialista, encarando o mundo como um espaço comercial. A experiência é como um mercado, profundamente transacional: devo investir nisto? O quê vou ganhar com aquilo? Como está o meu valor próprio? Onde devo me fincar?
O Ás de Ouros é semente preciosa; contudo, ainda é semente e, portanto, depende da dedicação de quem a cultiva. Este é um Ás que valoriza a rotina, o afinco, o trabalho bem-feito e o alto padrão de qualidade que só se atinge depois de muito tempo investido.
O elemento terra é a natureza da qual nossa sobrevivência depende tão visceralmente. Da abundância exuberante à escassez terrível: tudo que Ouros nos dá, é também aquilo que ele pode nos retirar.
Vaca entra, Touro sai
Um dos animais comumente associados ao elemento terra é o Touro. Astrologicamente falando, Touro é um signo de qualidade fixa, sendo representado pelo elemento mais estável de todos. Portanto, possui uma espécie de dupla fixidez. Pela sua força atrelada à resistência (e não à agilidade), o animal robusto de grande porte está plenamente de acordo com as características do naipe de Ouros. Todavia, faço aqui minha pequena intervenção pessoal-artística: o elemento terra é receptivo, nutridor, feminino. Quem dá o leite e pare bezerros é a vaca. Portanto, optei por dar a ela a representação neste Ás.
Esta alteração de gênero simbólico significa muito aqui, pois era na vaca sagrada Kamadhenu que eu queria chegar.
Segundo a mitologia hindu, Kamadhenu é a mãe de todas as vacas. A deusa bovina dona de divinas tetas é fonte de leite inesgotável; quem tiver o privilégio de ser seu dono (ou melhor, ser seu protegido?) terá todas suas necessidades materiais atendidas por ela. Kamadhenu tem uma força nutridora capaz de alimentar multidões.
Num dos mitos associados à divindade, conta-se que ela nasce emergindo de um Oceano de Leite, junto de outros seres divinos associados à saúde, beleza e prosperidade. No conto, o batimento do oceano requer um esforço extraordinário por parte dos Devas e Asuras, além de muita persistência para enfrentar as dificuldades do processo. É um trabalho árduo e demorado, digno de um naipe de Ouros. Após muita dedicação, alguns tesouros emergem das profundezas do Oceano de Leite, um após o outro; dentre eles, emerge a vaca sagrada Kamadhenu.
Os Presentes Celestiais que surgem neste Oceano causam tamanha admiração nos Devas e Asuras que logo o encantamento se transforma em cobiça, gerando uma disputa violenta pelas posses entre os dois grupos.
Fazendo um exercício interpretativo aqui — e deixando claro que não sou nenhuma especialista em mitologia hindu — o Oceano de Leite pode ser lido, talvez, como uma espécie de matéria-prima fundamental, dotada de infinita capacidade geradora; assim como Kamadhenu é a mãe de todas as vacas, o Oceano de Leite é a origem de todas as benesses. Infelizmente, tanto os Devas quanto os Asuras são incapazes de usufruir dos presentes concedidos de forma pacífica e compartilhada. A disputa, aliás, parece ser eterna e inevitável desde o início do conto. Conforme as riquezas vão se revelando, cada grupo quer tudo para si e nada para o outro. A guerra é enfim instaurada.
A abundância, em si, não é conflituosa. Dado que é abundante, pressupõe-se que existe o bastante para ser compartilhada. O problema é o impacto que a abundância causa em sujeitos de visão estreita. Quem tudo quer e nada semeia; quem tudo toma e nada oferta; quem quer tudo para si e apenas para si, sendo incapaz de repartir uma fatia de seu bolo com o outro: este tem o estômago furado. É um buraco impossível de ser tapado. Pode comer muito e não se saciar nunca; pode roubar tudo e continuar miserável. A verdadeira riqueza emerge do Oceano de Leite, inesgotável, multiplicável, benfeitora de todos os seres — inclusive dos ingratos.
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Um abraço,
lari.
Estou lendo os posts que não li em 2024 e ri muito quando apareceu a foto da icônica Radija, uma Pajem de Ouros, maravilhosa.
Quero broches teus, logo logo comprarei! Lindos! E as cartas, bem essas nem se fale, aprendendo muito e com certeza terei um tarô teu! 🫶🏻