Antes de dar continuidade à criação das outras cartas de Tarot, eu gostaria de falar sobre algumas escolhas gráficas que fiz no projeto. Não sei se vocês, leitores que me acompanham na criação deste baralho novo, já perceberam: cada naipe acompanha uma moldura e um elemento floral bem específico na carta.
As flores ilustradas não foram escolhidas ao acaso; cada espécie traduz alguns dos significados simbólicos do elemento que representa. Assim como as flores, as paletas de cor construídas também constituem um importante elemento da identidade visual de cada naipe.
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Sobre as Cores
Enquanto planejava meu Tarot — antes de qualquer rascunho ou desenho — pensei que seria interessante poder diferenciar o naipe das cartas rapidamente num olhar. Concluí que a forma mais eficaz de estabelecer esta diferenciação imediata seria através das cores usadas. A lógica é a mesma aplicada nos jogos de futebol: não se coloca dois times adversários pra jogar usando camisas azuis porque vai dar confusão. A agilidade no discernimento de quem é igual e quem é diferente exige uma diferenciação cromática mais evidente.
Seguindo essa lógica, criei paletas-base para cada naipe, respeitando tanto seus significados simbólicos quanto suas interpretações mais literais.
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As Cores e a Flor de Terra
A paleta do Naipe de Ouros, por exemplo, não poderia deixar de ter marrom. Afinal, Ouros equivale ao elemento terra. Terra, chão, barro é literalmente marrom, mas não só; O naipe de Ouros fala da fertilidade possível daquela Terra — e Terra fértil se converte em Terra verde. Da Terra fertilizada e cultivada nascem os frutos — que representei pelo roxo, como as uvas, as ameixas, o açaí e tantos outros. Os recursos representados pelo naipe de Ouros não são apenas os naturais, como os frutos nascidos da terra cultivada, mas também os que obtemos através das atividades de comércio e prestação de serviços (e, se for alguém muito sortudo, através de uma herança). Logo, os frutos oriundos da agricultura, quando vendidos, são convertidos em dinheiro, moedas, ouro: o amarelo que fecha a paleta-base do naipe.
Quis atribuir à flor do Naipe de Ouros um significado de valor. Uma flor cuja aparência não fosse sua principal característica, mas seu valor de troca comercial. Resumindo: uma flor que dá dinheiro, um dos atributos do naipe.
Foi seguindo esta linha de raciocínio que cheguei na flor de Açafrão.
O açafrão é considerado uma das especiarias mais caras do mundo. Atenção: não estou falando do açafrão-da-terra (que conhecemos como cúrcuma) e que encontramos com facilidade aqui no Brasil. O açafrão das rycas é extraído do pistilo de uma flor arroxeada chamada Crocus sativus, cuja origem provável vem das regiões mediterrâneas.
A extração do açafrão é um processo delicado e manual. Além disso, cada flor gera apenas 3 pistilos (esses cabinhos vermelhos da foto), ou seja: para se conseguir 1 quilo da especiaria é necessário colher 250 mil flores (doideira? pois sim). O valor do grama do açafrão verdadeiro quase se equipara ao valor do grama do ouro (fontes usadas: esta e esta)! Por isso tudo, minha gente, não tinha flor mais adequada para representar o naipe da abundância.
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As Cores e a Flor de Água
A paleta do Naipe de Copas, claro, partiu de tons de azul. O elemento Água é o responsável por traduzir as emoções em todo o seu espectro, ou seja: era preciso ter desde um tom de azul claro (ensolarado, otimista e alegre) até um tom de azul-escuro-quase-preto (soturno, triste, melancólico). Além das emoções, era preciso incluir uma cor que traduzisse o aspecto lírico do elemento, já que é um naipe dado a fazeres artísticos e a romances: assim, incluí o rosa na paleta. Pra fechar as cores do Naipe, escolhi uma cor que fica meio lá, meio cá, ao mesmo tempo em que é vibrante e talvez saturada demais para parecer algo real (já que o Naipe de Copas tende a escapismos). Eis o verde piscina, ou verde água? — enfim, aquele verde que é quase azul e cuja graça reside justamente na sua quase-indefinição, fluida como a água.
Foi natural pensar na flor do Naipe de Copas como uma espécie aquática. Era preciso também ser bonita, por ser a beleza muitíssimo apreciada pelo elemento; se incluir espiritualidade no pacote, melhor ainda, pois estamos falando de um Naipe que fala de transcendência e fé.
A flor de lótus atendia a todas estas características.
A espécie é um dos principais símbolos de algumas religiões asiáticas, como o hinduísmo e o budismo, sendo muito presente em suas representações artísticas e em suas escrituras. A flor de lótus frequentemente é representada como um trono divino, no qual repousa uma figura de importância espiritual.
Segundo um trecho do Bhagavad Gita ( capítulo 5, verso 10),
Aquele que executa seu dever sem apego, entregando os resultados ao Senhor Supremo, não é afetado pela ação pecaminosa, assim como a folha de lótus não é tocada pela água.
A flor de lótus nasce da lama, e precisa atravessar a água barrosa, turva, para ascender à superfície que se encontra além da água. No budismo, esta ascensão é comparada à iluminação; quando se alcança o estado búdico, não importa o quão turva a água esteja ao seu redor (na confusão das sensações e emoções samsáricas), a flor de lótus (consciência iluminada) permanece impoluta.
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As Cores e a Flor de Ar
A paleta do Naipe de Espadas precisava de uma abordagem bem diferente dos naipes anteriores. Uma Espada é uma arma: fria, dura, cortante. A paleta do Elemento Ar deveria incorporar essa frieza lógica e racional em seu aspecto visual. Portanto, cores acizentadas são dominantes em tons de cinza e num azul carregado de preto em sua composição. O vigor dos limites estabelecidos — doa a quem doer — é representado pela cor vermelha, que faz um contraste agudo com o restante da paleta, e que nos lembra de que, sim, espadas abrem feridas. A mistura da agressividade do vermelho com a frieza do azul resulta no violeta, uma cor fria, porém *salpicada* de sangue, quero dizer, de vermelho na sua composição.
Não é só de agressão, treta e sofrimento que se constitui o naipe de Espadas. Devo lembrar que Espadas é regido pelo Elemento Ar e, portanto, é afiado em outras coisas também: na comunicação, no raciocínio lógico, na eloquência, na objetividade, no planejamento, na sagacidade, na capacidade analítica. Tá bem, tudo muito bem. Que raio de FLOR será capaz de dar conta desse elemento?
A flor do Elemento Ar teria que ser tão fria e objetiva quanto o elemento que representa — sem floreios (rs) e direta ao ponto. E, se possível, incorporar o elemento em sua natureza.
Então, a flor que escolhi para o Naipe de Espadas não é exatamente uma flor… é o estado pós-floração do dente-de-leão.
A flor de dente-de-leão é amarela. Após alguns dias, as pétalas murcham, secam e caem, dando lugar às pequenas cipselas, de cor branca. Estas carregam os frutos da espécie e, dentro dos frutos, as sementes responsáveis pela disseminação da espécie.
O dente-de-leão é favorecido pelas correntes de vento, que ajudam a dispersar suas sementes — e que podem alcançar longas distâncias até a semeadura. Além disso, é uma espécie ruderal, ou seja, caracterizada por ser uma das primeiras a colonizar solos perturbados, como aterros, terrenos incendiados e outras condições adversas para plantio.
Além disso, as folhas do dente-de-leão têm um formato “dentado”, o que teria influenciado seu nome, muito alinhado com o Naipe de Espadas: afinal, dente de leão também perfura e corta.
A espécie é, portanto, favorecida pelo ar e dura na queda em conquistar terrenos inóspitos que poucas plantas suportariam. Por tudo isso, escolhi o dente-de-leão para representar o Naipe de Espadas.
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As Cores e a Flor de Fogo
A paleta do Naipe de Paus foi construída para sintetizar toda potência impulsiva, empreendedora e cheia de vida de seu elemento. Sendo assim, tons de vermelho deveriam ser dominantes no naipe. O amarelo, símbolo de energia vital, foi incluído — além de servir como um contraponto básico ao vermelho na representação gráfica do fogo. Adicionei o marrom claro como referência à madeira do bastão/pau que sustenta a chama (perseverança) e o marrom escuro-quase-preto para representar as cinzas que permanecem após a combustão (além de ilustrar os pelos da pantera/gato preto). Por último, incluí o verde como cor de contraste — pois o Naipe de Paus navega bem na alteridade, tendo consciência dos limites entre o Eu e O Outro.
A flor do Elemento Fogo não poderia ser mais óbvia: o girassol foi a minha escolha.
Originário das Américas, o girassol tem uma aparência bastante imponente. A flor da espécie, que floresce durante o verão, tem em torno de 10 centímetros de diâmetro e seu caule, 3 metros de altura, podendo ser maior do que isso. O bichinho é grande. A flor do girassol se assemelha às representações simbólicas que fazemos do sol: um grande círculo com raios dourados partindo de seu centro, irradiando luz (amarelo).
Além disso, há uma ideia equivocada, mas popularmente difundida, de que o girassol acompanha o trajeto do sol ao longo do dia (explicada aqui). Tal conceito deve ter contribuído para a associação da planta ao astro-rei.
Bela, imponente e útil também: das suas sementes comestíveis são extraídas o óleo de girassol e feitas rações para aves. O néctar da flor atrai abelhas polinizadoras, sendo uma alternativa para a produção de mel.
Sendo solar, exuberante, bela e útil, a flor do girassol foi minha opção imediata para representar o elemento Fogo do Naipe de Paus.
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Um detalhe que ainda não decidi
Coincidência ou não, quando ilustrei o primeiro Arcano Maior do Tarot (O Mago), acabei por manter a temática floral na moldura da carta por um motivo bem simples: eu queria incluir as flores do opus alquímico (uma branca e uma vermelha) na ilustração. É o Mago quem inicia os trabalhos dos 22 Arcanos Maiores; é ele quem manipula os quatro elementos na curiosidade de fabricar a pedra filosofal. Logo, foi um caminho natural escolher as flores alquímicas para representar conquistas importantes da arte iniciada pelo Mago: o albedo, representado pela rosa branca, a purificação e espiritualização da matéria; e o rubedo, representado pela rosa vermelha, sendo o resultado final da obra, a corporificação do espírito1.
Já resolvi os símbolos usados na moldura da carta d’O Mago, mas ainda tenho 21 Arcanos Maiores para decidir e desenhar. Não sei se será possível, criativamente falando, associar flores diferentes aos atributos de cada Arcano que ainda me aguarda. Será, no mínimo, um trabalhinho de corno. Não prometo nada. Vamos ver.
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Um abraço e até a próxima news,
lari.
BURCKHARDT, Titus. Alquimia. São Paulo, 2023, pág. 174.
Obrigada por compartilhar tão ricos detalhes! Muito bonito acompanhar e poder entender mais do seu processo. O resultado fica ainda mais rico <3
Essa flor de açafrão é super venenosa, sabia? Eu tinha que vigiar minha filha mais nova durante nossos passeios para ela não comer rs
Oi, Lari! Parabéns pelo seu trabalho, estou ansiosa por esse tarô. Tenho o outro seu e o amo, aliás, não tem como não se apaixonar: ilustrações sensiveis, belas e poéticas. Sua arte é maravilhosa.