Nesta edição partilho com vocês mais uma etapa do processo criativo do meu baralho de Tarot. Assim como o Mago, o próximo Arcano Maior também é dotado de poderes ocultos. Contudo, sua manifestação é de outra natureza. Eis a Suma Sacerdotisa — também conhecida como Papisa — que protege muitas coisas atrás de seus véus.
Particularmente, percebo uma tendência que alguns cartomantes têm em desprezar este Arcano nas leituras. A Sacerdotisa tem defeitos e qualidades, como TODAS as cartas de Tarot têm; nem mais, nem menos. Se sua manifestação será positiva ou negativa, vai depender da pergunta feita, da área relacionada, do plano de manifestação da carta, etc… assim como qualquer outra.
Fica uma dica aqui, por experiência própria: quando uma pessoa tem um especial ranço com determinado Arcano, esta repulsa costuma revelar muito sobre as dificuldades enfrentadas por essa mesma pessoa. O Arcano, muitas vezes, representa seus pontos cegos, as características que lhe faltam (ou que excedem em sua personalidade) e/ou áreas de sua vida que precisam ser trabalhadas.
A Sacerdotisa é aquela figura que mergulha fundo num assunto, sem preguiça nem atalhos: diferente do seu antecessor, ela não é adepta do jeitinho. A Sacerdotisa é metódica e estuda seu objeto de interesse de todos os ângulos possíveis e imagináveis — sem pular nem as notas de rodapé. Ela não tem pressa alguma. Sim, ela pode demorar o tempo que for. Com esta informação, você já tem uma pista de quem costuma encrencar com a Sacerdotisa: pessoas ansiosas não gostam muito do seu jeito paradão.
Em defesa do Arcano de número 2, eu digo: ninguém se aprofunda em nada sem sossegar o facho por algum tempo e prestar atenção.
Que venha a Senhora dos Mistérios.
A Suma Sacerdotisa
Silêncio. Uma mulher com jeito de esfinge nos aguarda no claustro. Passos lentos e gestos medidos ocultados por um longo véu. Nenhuma expressão se desenha em seu rosto.
O Arcano de número 2 nos leva a um cômodo secreto, longe das vistas dos curiosos. A porta, camuflada, está trancada — e somente ela tem a chave. Ao entrarmos, vemos um quarto iluminado à meia-luz, protegido das interferências externas e abarrotado de caixinhas, baús, gavetas e livros. Muitos livros. Aqui se encontram conhecimentos profundos, de todas as épocas e em todas as línguas. No entanto, a cadeira de leitura é um tanto austera e desconfortável para sentar. Ela, acostumada a sustentar desconfortos, não reclama: fica por lá, sentada por horas a fio, estudando.
A Sacerdotisa mergulha nas leituras do mundo: passado, presente e futuro; o material e o intangível; o que foi dito e, principalmente: aquilo que se deixou de dizer. Nem as entrelinhas escapam de seu olhar analítico, perscrutador. Inteligência afiada. Boca selada.
Os gestos de nossa anfitriã parecem petrificados, suspensos no tempo como estátua de mármore. Sua presença é pedra fria. Não há ação — e, quando há, é um mínimo movimento, furtivo, discreto, imperceptível. Ela respira? Impossível verificar. Mas ela pensa, e muito: por debaixo dos panos sua atividade mental é extraordinária, incansável e até excessiva. A Sacerdotisa não tem medo de mergulhar fundo na aquisição de conhecimento. O problema, aqui, é praticá-lo.
Sua existência é noturna e iluminada pela luz da Lua. As longas esperas; os conteúdos ocultos; o saber destituído de pompa; os segredos que levamos conosco até o túmulo. Este é o território da Sacerdotisa, cuja paciência inacreditável faz desatar nós intrincados num longo cordão de contas ancestral. Em suas mãos meticulosas, o cordão volta a ser perfeito; basta saber esperar o resultado.
Com tantos véus e tanto recato, esquecemos que a Sacerdotisa possui um CORPO. Dentro deste corpo, há um ÚTERO. É virginal ou foi secretamente fecundado? São perguntas que atiçam a curiosidade humana: quem é o Pai, o Filho? E o Espírito Santo? Mistério sempre há de pintar por aí.
O claustro arquitetônico e o claustro cerebral
Primeiramente, é preciso lembrar que as raízes simbólicas das cartas do Tarot estão profundamente associadas ao repertório e visão de mundo cristãos1. Apesar da minha intenção não pretender seguir *apenas* com a referência cristã no meu baralho (como, por exemplo, a associação que fiz do Mago com Exu), eventualmente usarei alguns símbolos desta doutrina.

Dito isto, vamos aos claustros, que representam muito bem as características e atividades de nossa Sacerdotisa.
O Claustro Arquitetônico

Na arquitetura monástica, o claustro é uma espécie de passeio coberto cuja função é separar fisicamente as atividades religiosas dos monges/monjas das dos serviços prestados pelos servos para manutenção do mosteiro ou convento.
Tal separação simboliza concretamente uma transição entre as tarefas consideradas mundanas daquelas ditas superiores e sagradas. Estas últimas precisam de recolhimento, privacidade e silêncio.
No tempo de Carlos Magno (r. 768–814), as exigências de uma comunidade monástica separada dentro de uma extensa e dispersa propriedade senhorial levaram ao desenvolvimento de um "mosteiro dentro de um mosteiro" na forma de claustro fechado, uma solução arquitetônica que permite os monges para realizar suas tarefas sagradas longe das distrações de leigos e servos.2
O espaço reservado e protegido das interferências externas permitia a seus habitantes o aprofundamento dos estudos religiosos, como também facilitava a manutenção de posturas contemplativas. A concentração resoluta em seu caminho de vida (os votos assumidos perante à instituição) e a abstenção aos prazeres e distrações mundanos — tão numerosos do lado de fora — são características marcantes da Suma Sacerdotisa.

O Claustro Cerebral
Ao pesquisar sobre os claustros arquitetônicos, descobri que há, no cérebro humano, uma fina camada de substância cinzenta de mesmo nome.
E por quais motivos, razões ou circunstâncias eu achei relevante falar de anatomia cerebral numa newsletter sobre a Sacerdotisa? Pois bem: não se deixem enganar pela aparência lacônica da figura da carta; por trás de sua imobilidade física, a atividade mental do Arcano é intensa. Esta mulher é inteligentíssima, arguta, pesquisadora nata. Seu cérebro capta diretamente os códigos, mensagens e percepções — sejam eles mundanos ou de outra ordem — e os decifra com muita competência.

Daí, voltemos para o claustro cerebral, ou Claustrum. O quê essa parte de nosso corpo faz por nós? Como não sou médica e meus conhecimentos neurológicos são pífios, vou deixar aqui estas transcrições:
A função do claustro ainda é relativamente desconhecida. No passado, pesquisas identificaram várias conexões neuronais entre o claustro e as estruturas adjacentes do córtex cerebral, e já foram relatadas conexões recíprocas entre todas as regiões corticais do cérebro e o claustro. (…) Pesquisas mais recentes sugerem que o claustro funciona como uma área de processamento do conhecimento, estando envolvido, especificamente, na diferenciação entre informações relevantes e irrelevantes.3
E mais:
Foi demonstrado que o claustro tem atividade generalizada em vários componentes corticais, todos associados a componentes de consciência e atenção sustentada. Isso se deve à ampla conectividade com as áreas frontoparietais, córtex cingulado e tálamo. (…) É proposto que o claustro funciona no controle da atenção seletiva. Através deste processo de controle, o claustro pode controlar seletivamente a entrada dessas modalidades para facilitar o processo de “focalização”. Também foi sugerido que funciona no contexto oposto; que através da normalização divisiva o claustro pode implementar resistência a certas modalidades de entrada para evitar distrações.4
Ou seja: manejo de informações complexas, discernimento e concentração sustentada por um longo período. Estas são algumas das habilidades da Sacerdotisa enquanto aparenta ser apenas uma pessoa com cara de paisagem.
A lenda da mulher que foi Papa
Existe uma história famosa, muito recorrente no conteúdo dos cursos de Tarot, sobre a Papisa Joana, figura da Idade Média que teria influenciado a construção imagética do Arcano de número 2.
Em algum momento da história do cristianismo houve uma mulher que foi Papa? Segue o relato de Alberto Cousté sobre o causo:
Nesta imagem reconhece-se a alusão a um fato histórico, ou melhor, pseudo-histórico, que ocupa um lugar notável na literatura da Idade Média: a pretensa existência de um Papa do sexo feminino. A tradição popular diz que uma mulher ocupou a cadeira de São Pedro durante alguns anos sob o nome de João VIII.5
Segundo uma das várias versões da lenda, Joana foi uma mulher que, ainda jovem, adotou roupas masculinas para se fingir de homem em sociedade e, desta forma, poder estudar. Dotada de incrível inteligência e cultura, foi à Roma passando-se por monge e ingressou na vida religiosa. Ao longo dos anos, Joana teria subido na carreira monástica graças ao seu admirado intelecto; por fim, foi eleita como Papa após a morte de seu antecessor, Leão IV.
Continuamos com Cousté:
A papisa teria ficado grávida de um dos seus familiares e, ignorando a época do parto, o acontecimento teria se dado em plena rua, durante uma procissão entre a igreja de São Clemente e o palácio de Latrão. Descoberto dramaticamente o embuste, o enfurecido séquito teria assassinado Joana e seu filho.

As vestes volumosas usadas pelos Papas teriam facilitado Joana a ocultar sua gravidez. Porém, a revelação aconteceu de forma dramática e com consequências mortais.
Percebam a importância do SEGREDO na construção deste Arcano.
Em alguns baralhos de Tarot a referência à lenda da Papisa Joana é evidenciada pela existência de uma mulher usando a tiara papal, como vemos abaixo.

Santa ou Bruxa?
Resposta rápida: vai depender de quem detém a narrativa.
A Sacerdotisa indica alguém que possui uma profunda ligação com o plano espiritual. Diferentemente do Mago, que performa em espaços públicos, o acesso à instâncias superiores da Papisa se eleva dentro de seu foro íntimo; aguça sua intuição; afia sua capacidade de ler e interpretar o mundo e os outros. Esta habilidade é percebida por ela como algo precioso e reservado para si. A chave que incluí na ilustração da carta, presa na cintura da figura, revela este aspecto secreto e particular.
Fica a provocação: o Mago, como princípio ativo, geralmente representado como um homem, é desinibido, age em público e não tem medo de ser espontâneo. A Sacerdotisa, sendo seu oposto complementar, representa o princípio passivo, tradicionalmente representado por uma mulher. Portanto, ela assume as características opostas às do Mago: é retraída, age nos bastidores, e cada movimento seu é milimetricamente planejado — isto se houver movimento. Não existe espaço para improvisos aqui. Por que, afinal, a primeira figura feminina do Tarot não tinha o direito de agir com espontaneidade, de forma livre e desimpedida? Vale lembrar, novamente, das origens medievais europeias do baralho. Neste contexto, quais os riscos que uma mulher corria ao praticar atos “mágicos”, a saber “demais”, a exercer alguma crença ou ritual considerados pagãos? Prisão, tortura, humilhação pública, fogueira.
Que delícia achar que esse risco se encerrou na idade Média. Alguma mulher, em 2025, se sente totalmente livre e desimpedida para ser quem é sem sofrer as consequências das pressões sociais destinadas ao seu gênero? Alguma mulher se sente efetivamente segura (fisicamente, emocionalmente, financeiramente)? Considerando um homem e uma mulher, ambos desinibidos e espontâneos: qual dos dois corre o risco de ser condenado à fogueira primeiro?
O recolhimento da Sacerdotisa é uma forma de autoproteção. Ela sabe muito (olha o tamanho do livro no colo dela!), e sabe também que tal conhecimento, nas mãos de uma mulher, pode ser visto como uma ameaça pelo seu entorno.
O Mago se sente confortável e fala pelos cotovelos. A Sacerdotisa está numa posição desconfortável e prefere se calar por temer os riscos envolvidos. Eis as polaridades do Público x Privado e suas permissões dentro do sistema patriarcal.
Claro: tudo depende do jogo. Nem sempre a Sacerdotisa indicará uma pessoa (independente do gênero) que se retrai por medo. Por vezes ela pode indicar uma bruxona que entende de todos os paranauês, mandingas, poções, rezas, ervas, rituais. A Sacerdotisa tende a exercer uma espiritualidade própria (não necessariamente cristã ou submetida a um dogma). É a cartomante por excelência do Tarot — mas também pode ler mãos, borra de café, interpretar sonhos. Decifrar símbolos é sua maestria.
A Sacerdotisa é vista como Santa ou Bruxa a depender do contexto; se sua expertise é favorável ao status quo, é santificada; se é vista como ameaçadora às instituições de poder vigentes, é humilhada, perseguida, atacada. Vira Bruxa.
Desta forma, podemos compreender melhor quando alguém prefere se abster de emitir opiniões: em algumas circunstâncias, o silêncio e a discrição são a via segura.
Não sei se nossa bruxa intelectual se contentaria com esta newsletter. Provavelmente ela leria o texto inteiro e acharia a minha abordagem… muito rasa. Não falei daquelas romãs, das duas colunas, nem daqueles gatos. Não falei da LUA (!!!). Nada disso passaria despercebido por ela. Em minha defesa, tive que parar de escrever ao ver que este texto estava se prolongando demais… e olha que tentei ser sucinta.
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Na próxima news adentraremos as cartas de número 3.
(e eu adoro esse número)
Um abraço,
lari.
Um livro excelente para se aprofundar nas raízes históricas dos baralhos de Tarot é o História do Tarô, da autora Isabelle Nadolny, publicado no Brasil pela Editora Pensamento.
Horn, Walter (1973). “On the Origins of the Medieval Cloister”. Acessado neste link.
Trecho de artigo acessado neste link.
Trecho traduzido por mim do original em inglês acessado neste link.
Cousté, Alberto (1989). “Tarô ou a Máquina de Imaginar”. Editora Ground.
Adorei o texto, parabéns! 👏💕
Análise maravilhosa e enriquecedora. Vou ser a primeira na fila pra comprar esse tarô.